quinta-feira, 29 de abril de 2010

Caio F. "Sem Ana, Blues"

Para
Dante Pignatari

QUANDO Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos de dourado e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os vermelhos e os dourados do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, perguntando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma correspondência, a vizinha de cima à procura da gata persa que costumava fugir pela escada, ou mesmo alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento- quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência de Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como eu ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca – de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrima chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo na boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi também o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos dos sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vodca, lágrima, café e às vezes também de vômito; misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas que costumava pedir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.

Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas virgens de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tinha a voz rouca, eu as selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando os dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Deborah, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karima, Cristina, Márcia, Nadir, Aline e mais de quinze Marias, e uma por uma das garotas ousadas da rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaias de couro, e dessas moças que anunciam especialidades nos jornais. Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente obedecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar - então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão a Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés - ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas a Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas & velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mr. Wonderful, musculação, alongamento, ioga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarujá ou Monte Verde e de repente quem sabe Cana, mulher de Vicente, tão compreensiva & madura, e inesperadamente Mariana, irmã de Vicente, tão disponível & natural em seu fio- dental metálico e, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi-se tornando aos poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores e interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homemquase maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei a ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.

Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver uns restos de dourado e vermelho por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária-eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, irrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. E para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.



P.S.: Mais uma parte de Os dragões não conhecem o paraíso. Sem Ana Blues é, segundo Márcia Denser, "talvez o mais belo dos seus textos" que foi dedicado "à celebração do amor ausente".

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Dedo na ferida















Hoje eu fui assaltada

Hoje eu pretendia continuar a navegar nos mares da poesia, embalada por Caio F. que dormiu comigo esta noite. Pretendia falar de encontros, de amores, de desencontros... desses fragmentos de vida que fluem nas veias das grandes cidades e das pequenas também. Porém, fui assaltada. De arma em punho, mais uma vez a realidade me furtou este bem: o olhar da poesia. Mas é só por hoje... amanhã eu o recupero. Tenho fé.

Quando me roubou o olhar da poesia hoje, a realidade – que só assalta os desavisados que vivem com os olhos bem abertos, ao contrário dos outros assaltantes, que preferem os distraídos – ela ficou nua pra mim. Atentado violento ao pudor, eu poderia alegar. E ainda mais, eu poderia alegar violência desmedida, pois a sua nudez não era igual àquelas que estampam as capas das revistas onde os ex- BBB´s moram atualmente. A sua nudez trouxe a dor e não o prazer.

No corpo dessa Realidade (sim, com letra maiúscula) estava escrita a história de um menino, um jovem menino. Negro, pobre, analfabeto, suburbano. Ele foi preso e julgado sumariamente pela polícia militar da bahia (isso mesmo, com letras minúsculas). Seu crime: ser negro, pobre, analfabeto e suburbano. Sua sentença: a morte. E tem quem acredite que não existe pena de morte no brasil (de novo, com letras minúsculas).

Ele morreu como muitos morrem todos os dias e pelos mesmos motivos: ter nascido negro e pobre, não ter se educado e não ter um lugar decente para morar. Praticamente um bicho. A culpa é dele. Nasceu todo errado. Na verdade, nem devia ter nascido! Os bravos policiais, cumpridores dos seus deveres, devem estar se sentindo muito honrados por lhes ser confiada a nobre obrigação de livrar a sociedade dessa “raça ruim”. O estado (mais uma vez, em letras minúsculas) deve estar se sentindo aliviado por ter menos um preto, pobre, analfabeto e suburbano para sustentar.

E eu... eu fico aqui, escrevendo: Preta como ele, Pobre como ele, Suburbana como ele. Fico aqui também pensando: ele sou eu, eu sou ele. E me pergunto: em que momento meu caminho se desviou do dele? Em que esquina deixamos de nos cruzar? Talvez eu saiba a resposta. Talvez nunca venha a saber, porque as vezes é melhor o não-saber.

Hoje eu fui assaltada. Quem me assaltou me levou tudo... Só deixou essa carcaça corpulenta e fria que - com os olhos arregalados flutuando em águas mornas e salgadas que escorrem até a boca - não tem o que dizer.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Caio F. "Os Dragões Não Conhecem o Paraíso"



Para
Marion Frank,
lembrando os dragões de
Alex Flemming


“Por ver com muita clareza as causas e os efeitos,
ele completa, no tempo certo, as seis etapas
e sobe no momento adequado rumo aos céus, como que conduzido por seis dragões.”
(Ch‘ien, O Criativo: I Ching, o Livro das Mutações)



Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço - seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu grandiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha - felizmente indecifrável - lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo - isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora - as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora a ponto de convencê-lo a voltar, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada.

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentada no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para transformar-se numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três da tarde ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se estivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar - que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava - digamos - adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinhos banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quando você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quando ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como seda para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembram destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento; tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quando perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: “Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível”.

Ele gostava tanto dessas palavras começadas por in - invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã, a alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou à cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia - nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê devia sonhar com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quando deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões - coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para mim. Depois estendeu as mãos para o meu lado esquerdo, onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca - amor. Se não o tempo todo, pelo menos quando lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e o avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber por que, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e beringelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que o espaço ficasse mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores - acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Perguntei o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quando sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim...

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicadias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ir ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos para ver se encontrava pelo menos o reflexo de suas escamas de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou a fumaça de suas narinas, cujas cores mudavam conforme seu humor. Que era quase sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dia após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Eles não compreenderiam, ninguém compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias - você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades - que não aconteciam, mas que importa? - a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto - porque não estou certo - coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto - pelo avesso, igual ao direito - incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos - como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto a pensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo - tão banal e sedento - a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe. E esse nada incluiria o amor e Deus, e também os dragões e todo o resto, visível ou invisível.

Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia de mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

- Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

Não, isso também não é verdade.


P.S.: Este talvez seja o mais metafórico dos contos que compõem esta obra do Caio. Ele dá título ao livro. É o meu predileto.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Navalha na carne



A matéria sobre a tramitação de um projeto que prevê a prisão e até pena de morte para homossexuais em Uganda chocou o Brasil. Tomei conhecimento da mesma através de comentários de pessoas espantadas com o absurdo e com a falta de "civilidade" que ainda impera nos países africanos. Fui conferir para compreender exatamente do que falavam.

A questão da homossexualidade ainda é tabu na África, assim como no Brasil e em muitos outros países do mundo. Mas numa dimensão maior, é claro... reconheço. O atraso educacional do continente em geral, e deste país em particular - que só se tonou independente em 1962, ou seja, há menos de 60 anos, e desde então vive em permanentes conflitos civis, motivados por questões políticas e econômicas -, creio eu, ser o grande responsável pela sua falta de "civilidade". A história de exploração, negação de direitos e alijamento dos processos educacionais vivida por aquele povo explica a maneira como encaram questões que nós, "civilizados", julgamos já ter dado conta. Explica, mas não justifica... é importante salientar.

Fiquei horrorizada com a situação, como os demais. Não só horrizada, como revoltada. Mas não parei por aí.

À medida que a matéria era exibida me pus a refletir sobre o que ouvia. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato do repórter, civilizado, repetir insistentemente o termo "homossexualismo", que já foi abolido e não é novidade. A linguagem é expressão do pensamento. Ao usar o termo homossexualismo, ao invés de homossexualidade, o repórter reforçava a idéia que ainda impera em nossa sociedade "civilizada" da condição de "doente" em relação aos homossexuais. Assim como o povo de Uganda, ainda perdura em nós a noção de anormalidade no que tange à homossexualidade. É Patologia. Desvio.

Para a além da evidência expressa no vocabulário de quem conduzia a matéria, fiquei me perguntando: quem somos nós para julgar o ugandês? Até que ponto nos distanciamos dele?

Tento responder:

1. Somos o país civilizado onde um homossexual é assassinado a cada dois dias, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB). É pena de morte, assim como lá. Fere os princípios dos direitos humanos do mesmo jeito, mas sem o aval do Estado. Até que ponto?
2. Somos o país civilizado onde o homossexual não tem o direito à união civil.
3. Somos o país civilizado onde ainda existem profissionais e religiosos que dizem "curar" a homossexualidade.
4. Somos o país civilizado onde jovens homossexuais ainda são expulsos de casa ao assumir sua orientação.
5. Somos o país civilizado onde muitos pais ainda afirmam preferir ter um filho ladrão do quê "viado" ou uma filha puta do quê lésbica, ou até mesmo preferem o filho morto a qualquer uma das duas coisas.
6. Somos o país civilizado que ainda não aprovou a adoção legal de crianças por casais homossexuais - salvo algumas exceções que ficam a mercê do bom senso de algum juiz - porque está em pauta a "má influência" que tal configuração familiar pode ter sobre a criança.
7. Somos o país civilizado em que milhares de homossexuais vivem "dentro do armário" por medo da discriminação, do linchamento público, da perda do afeto daqueles que lhes são caros. Não seria isso uma forma de "prisão perpétua"?
9. Somos o país civilizado em que alunos de uma das suas maiores instituições de ensino superior divulgam no jornal uma promoção que premiaria quem jogasse fezes em gays.
10. Somos o país civilizado em que casais gays são convidados a se retirar de determinados ambientes por agredirem os demais clientes com demonstrações de afeto.
11. Somos o país civilizado que premia com a cifra de R$ 1 milhão um cidadão que faz declarações de caráter homofóbico em rede nacional.

Poderia escrever uma lista interminável aqui. Desnecessário.

O que eu quero dizer com isso?

Grosso modo, que o que nos difere do povo de Uganda é a hipocrisia. O eufemismo. É a mania de dizer ter um comportamento politicamente correto, que nos garanta certo ar de civilidade. Discurso vazio que não se sustenta em nossos atos.

O Brasil é um país onde os homossexuais são tratados com igualdade de direitos tanto quanto os negros, os índios, as mulheres, os pobres e as pessoas com deficiência.

Minha avó dizia: "macaco fala dos outros e não olha pro rabo". Somos macacos, sem querer ofender nossos ancestrais. Avançamos sim, mas estamos muito aquém da superação e derrubada de tabus como a homossexualidade. Muitos ainda pagarão com a vida, como em Uganda... infelizmente.

Volto a afirmar que sob nenhuma hipótese considero a situação em Uganda justificável. Apenas considero que em ocasiões como esta vale o exercício da reflexão sobre o que deles existe em nós. Até que ponto eles realizam um desejo que os nossos valores morais "civilizados" não nos permitem mais? Até que ponto nossa revolta é legítima? Até quando faremos de conta que está tudo bem, está tudo certo ou que aqui não existe isso?

O que está havendo com a humanidade? Lembrei de Bauman. Preciso voltar a seus escritos.

domingo, 25 de abril de 2010

Que saudade da Clarice...


Por tudo que ela prepresenta em termos literários. Por tudo que é. Cada vez mergulho mais em seu universo, através de suas biografias. Tenho duas. Tudo da vida dos que eu admiro me interessa. Ajuda a compreender melhor os seus escritos, a sua obra.

Socializo a famosa carta escrita por Clarice à sua irmã Tânia Kaufman, que costuma ser divulgada em trechos, o que acaba descontextualizando e dificultando o entendimento da essência do seu dizer naquele momento.

Berna, 06 de janeiro de 1948

Minha florzinha,

Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não se parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim aponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.

Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa se perder de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo. Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.

Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos levar de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.

Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu..., em que pese a dura comparação. Para me adatar ao que era inadatável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus aguilhões - cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que nos leve de volta, só a idéia de ver você e retormar um pouco minha vida - que não era maravilhosa, mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

Mariazinha, mulher do Milton, um dia desses encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou: você era muito diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que me movo com a lassidão de uma mulher de cinqüenta anos.Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria nem necessidade de lhe dizer, então... Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pactos com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado.

Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite a você mesma mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas.

Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assitisse minha vida sem eu saber - pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria.

Isso seria uma lição para você. ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja - seja sair nos week-end, seja o que for. Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras - porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade?

Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã

Clarice

Garapa

O tilintar da colher no copo de alumínio não sai da cabeça. É assim que se faz a garapa - mistura de água com acúcar -, que durante alguns dias é a única fonte de alimentação diária das famílias cearenses retratadas no filme, que leva o mesmo nome.

O diretor José Padilha, famoso pelos filmes Tropa de Elite e Ônibus 174, volta mais uma vez a fazer crítica social. O tema é a fome que aflige milhares de brasileiros todos os dias e ele se inspirou em Vidas Secas, obra clássica de Graciliano Ramos. O filme foi rodado em preto e branco e sem trilha sonora. O assunto não é novidade, mas há algum tempo deixou de ser pauta principal de discussão no Brasil do Fome Zero.

São 110 minutos de "tortura psicológica". Provoca catarse. Vergonha de comer. Vergonha de sentir outras fomes.

Para além da questão da fome, o filme alude a outras discussões: invisibilidade, planejamento familiar, matriarcalismo, abrangência de programas sociais governamentais, responsabilidade social, responsabilidades individuais. Questões subjacentes que compõem o tecido social e revelam as fragilidades de uma sociedade essencialmente desigual.

O documentário não se revelou primoroso, ao meu ver. Pecou pelo execesso, em alguns casos. Pecou pela falta, em outros. De jeito nenhum isso retira o mérito da película, mas de alguma forma compromete o seu papel social. Em alguns momentos me senti assistindo um reality show "macabro". Voyeurismo social, como disse o crítico antes do filme ser exibido. Talvez esta tenha sido a intenção do diretor: chocar pelo realismo. "Mas tudo demais é sobra, e o que sobra aborrece", já dizia minha avó. Em um determinado momento o filme não evolui mais. Torna-se circular. Não desafia mais.

A experiência me fez recordar dos meses passados em Angola. Puro déjà vu. Lembrei do choro contido, das ânsias de vômito, das noites insone. Lembrei do quanto meus problemas pessoais daquele momento me distanciaram, de algum modo, daquela realidade que me esbofeteava diariamente. Lembrei da vergonha que sentia por sofrer por algo tão pequeno diante da complexidade dos dilemas daquelas pessoas com as quais tive contato durante aqueles dias. Tive consciência de que somos assim: egoístas e pequenos. Mas vivemos em outro contexto, uma outra realidade que demanda outras coisas. Isso faz toda a diferença.

Nossas fomes são outras, e não podemos nos ressentir disso. Fome é ausência, é falta, é necessidade... e ela sempre nos acompanhará. Mas, a partir de agora, quando sentir qualquer fome... aprenda a dar a devida dimensão para ela. Não a superestime... não a subestime. Apenas dê a devida dimensão para ela.

P.S.: O documentário Garapara estréia dia 29 de maio. Ontem e hoje ele foi exibido pelo Canal Brasil.

Você tem fome de quê?



Sessão de cinema coletiva em casa. Sem condições de comentar ou filosofar sobre. Vale por enquanto socializar o trailler do filme assistido. As reações são previsíveis: lágrimas, consciência da nossa pequenez, indignação, inquietação, reflexão. Cada um no seu canto, com seu lamento.

E a pergunta que não quer calar: você tem fome de quê?

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Se o amor quer me deixar, me deixe num domingo...


Acordou e não quis levantar-se. Ficou ali, olhando o teto branco. Sua cabeça doía tremendamente. Havia se excedido um pouco no dia anterior, porque em alguns momentos o álcool era seu refúgio. Bebeu, se divertiu... mas não parava de pensar na conversa há muito adiada e que sabia precisar acontecer. Fazia dias esta idéia não saía da sua cabeça e ele relutava em atender aos apelos dos sonhos que o atormentavam nas últimas noites. Sonhos ou pesadelos... ficou sem saber.

Pensou um pouco, tomou coragem e pegou o telefone. Não lembrava o número, mas lembrou que a memória atua no sentido de nos proteger. Ligou para uma amiga, pegou o número e finalmente ligou. Mãos trêmulas, voz vacilante disse: Alô! A voz do outro lado da linha fingiu não reconhecer. Talvez não tenha fingido também, pelo mesmo motivo que o fez não lembrar o número do telefone, pensou. A conversa foi breve, marcaram enfim o tão evitado encontro para dali a poucas horas.

Ele tomou banho como todos os dias, se vestiu como todos os dias, mas não saiu como em todos os dias. Na sua cabeça toda a história dos últimos anos voltou como um filme inacabado. Ele estava a caminho do set para a filmar a última cena, o último ato de um espetáculo que não teria o final feliz das produções hollywoodianas. Teria o final feliz daqueles que continuam seguindo seu caminho, apesar de.

Pegou o carro, cumprimentou o manobrista de maneira simpática e o desejou um bom domingo. Lembrou que era domingo e pensou: domingo não é um bom dia para se tomar atitudes grandiloquentes. Cantarolou os versos de Bethânia: "domingo eu não choro, domingo eu não sofro, domingo eu sou de paz e alegria". Reviu seus conceitos. Acendeu seu cigarro e rumou para o lugar que por algum tempo o acolheu como casa. Fuma nervosamente e, enquanto dirige, observa o caminho que há muito tempo não fazia. Tomou consciência de que tudo muda mesmo, em pouco tempo... até a paisagem das grandes cidades. Lembrou de si, da sua infância, das suas escolhas, do caminho que o levara até ali. Sorriu de contentamento.

Fumou, dirigiu e cantarolou durante todo o percurso. Não ensaiou um texto, não definiu um script. Gostava de improvisar, de se deixar levar pelo momento, ou pelo vento das circunstâncias, brincava. Mas isso não sempre, porque levava a sério a coisa de "tomar o seu destino pelas mãos" e o fazia muito bem.

Chegando ao seu destino ligou para avisar. Não queria ir até o apartamento. Preferia guardar na memória a imagem antiga do local onde fora feliz por um bom tempo e de onde saiu da última vez, ainda feliz... sem saber que ali não mais voltaria. Ficou aguardandona rua, ouvindo música e apreciando a tarde de sol e céu azul. Aproveitou para encher os pulmões de ar... que começava a rarear. Sentiu medo. Fumou mais uma vez.

Aguardou alguns minutos, até que ele apareceu com malas nas mãos. Trazia o pouco que sobrou da vida em comum. Foi ao seu encontro - não se abraçaram ou sorriram - pegou uma das malas e imediatamente foi conferí-las. Não era para ver se faltava alguma coisa - pois nem lembrava inclusive daquelas -, mas para evitar que levasse o que não era seu. Constatou que era só aquilo mesmo que tinha sobrado: umas peças de roupa e alguns papéis que ainda ocupavam a vida e o espaço do outro. Retirou tudo o que lhe pertencia das malas e as devolveu imediatamente. Corrigiu alguns pequenos equívocos, comuns, quando se confunde o que é seu com o que pertence ao outro na vida compartilhada.

Entraram no carro e andaram apenas um quarteirão, o que causou estranhamento ao outro. Sairam do carro e sentaram-se no banco da praça, quase abandonada. Um de frente pro outro. Olharam-se furtivamente, evitando contato. O outro tentou engatar uma conversa sobre amenidades, comentou sobre objetos que trazia, provavelmente na tentativa de dar leveza ao momento. Impossível. A tensão era latente e ele não estava a fim de conversar sobre as coisas, sobre os amigos, sobre a vida. Sabia muito bem o que estava a fazer ali, e não perderia seu tempo com digressões inúteis. O outro não era mais alguém com quem quisesse compartilhar o que quer que fosse.

De óculos escuros, olhava para aquela pessoa à sua frente e não via sombra de quem amou um dia. Tirou os óculos para ver se não era problema com as lentes. Era estranho. Parecia estar diante de alguém que encontrava pela primeira vez. Um estranho. Sentiu um tremor percorrer seu corpo. Acendeu um cigarro e olhou fixamente o outro esperando que se pronunciasse. A conversa foi rápida, sem discussão, sem troca de ofensas, mas com alguns cigarros, que tremiam na mão pálida. Cada um expôs seu ponto de vista sobre os fatos e seu encadeamento. Não houve cobranças. Talvez uma aqui ou outra ali, afinal eram um ex-casal e ex-casais sempre têm alguma conta para cobrar. Ele ouviu tudo: as desculpas, as verdades alteradas, as omissões. Não contou o que sabia. Preferiu manter consigo tudo que havia descoberto, daquelas coisas que os amigos só contam depois de terminada a relação. Não fazia mais sentido, não tinha mais importância. Talvez por certa compaixão quisesse que o outro acreditasse que fez tudo certo... à sua maneira, mas certo. Era a memória mais uma vez fazendo sua parte: "ele deve ter esquecido e não sou eu quem vai lembrar", pensou. Era o que tinha para dar naquele momento: certa tranquilidade, certa paz. Todos precisam. Outro cigarro.

Ele fez questão de dizer que adiou tanto tempo aquele encontro para que tivesse a certeza de que seria assim, sem a contaminação da raiva, das mágoas, da tristeza pelo fim e pela maneira como os laços foram desfeitos. Estava ali de alma limpa, sem ressentimentos mas, com uma certeza: a de que não mais o queria em sua vida, mesmo como amigo. Não fazia mais sentido. Laço desfeito, nó desatado.

Uma das suas crenças mais fortes era que amizade e respeito são inseparáveis. Uma vez acabado o respeito, com ele se vai a amizade. Lembrou de uma frase de um dos seus escritores prediletos: "Amor não resiste a tudo, não. Amor é jardim. Amor enche de erva daninha. Amizade também, todas as formas de amor." Enquanto estavam juntos, ele fazia questão de lembrar ao outro que antes de qualquer coisa eram amigos. E que gostaria que, se um dia o casamento acabasse, eles assim continuassem. Fez de tudo para que isso acontecesse, mas o outro não quis... fez sua escolha. Agora também ele estava fazendo a sua: manter-se firme no propósito de não refazer este laço, afinal escolhe seus amigos a dedo e naquele momento não via aquela pessoa como um deles. Pelas suas atitudes, pelas suas escolhas, não era alguém com quem quisesse compartilhar a vida.

Assim a conversa acabou. Certamente o outro ficou surpreso, pois estava acostumado a ser perdoado... e talvez por isso não pensasse duas vezes antes de magoar ou ferir. Ele estava certo de que fora ali apenas para fechar o ciclo, encerrar as coisas. O "talvez" nunca lhe soou bem. E assim o fez, sabendo também que no fundo ajudara o outro. Lhe deu a redenção, a libertação - se é que algo ainda o prendia - ao saber que estava tudo superado. O tempo fechou a ferida, ficou apenas a "cicatriz no plexo solar" - que com o tempo diminui e chega a sumir. Lhe deu também a possibilidade de aprender com o erro: "quem não aprende pelo amor, aprende pela dor", lembrou do ditado da infância. Ele amou demais e não conseguiu pelo o amor... não conseguiu o quê? Não sabia... Se sentiu arrogante e pretensioso. Ninguém ensina ninguém nestes assuntos e ele descobriu isso da pior forma possível. Pior... melhor? Isso existe? Duvidou. "Tudo é uma questão de ponto de vista", teve tempo de filosofar.

Despediram-se. Mais uma vez sem abraço, sem sorrisos e... sem lágrimas. Cada um seguiu seu caminho. Ele entrou no carro, acendeu mais um cigarro e lembrou de algo que sempre dizia ao outro: "teu olhar melhora o meu". Sorriu de contentamento pela segunda vez naquele domingo de sol, por sentir que não lhe restou nenhuma amargura. Não quis olhar para trás. Voltou para casa pelo mesmo caminho, mais uma vez observando como as coisas mudam, até a paisagem das grandes cidades.

Música boa...



Aprendendo a gostar de música estrangeira.
A música que eles fazem é incrível, de uma sonoridade ímpar! A diversidade que o grupo carrega é só a cereja do bolo.
Lindo e poético...

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Em terra de cego quem tem um olho é... maldito!


Li o romance de Saramago "Ensaio sobre a cegueira" há pelo menos 13 anos. Eu estava em plena adolescência, amadurecendo. Não consegui ler o livro de uma vez, como de hábito. Parei, hesitei... tamanha a complexidade da história descrita. Era um verdadeiro soco no estômago.

Eu sempre gostei de histórias complexas e que falassem sobre o humano. Porém aquela, naquele momento em particular, me pareceu difícil de digerir. Era um pouco demais para uma adolescente em formação. Depois de algumas semanas voltei ao livro e o concluí. Várias vezes senti meu estômago revirar, em diversos momentos as lágrimas rolaram em meu rosto. Senti vergonha de ser gente. Senti vergonha em ser humana. Me senti vil e "animalesca", frágil e estranhamente forte. Me vi, de alguma maneira, em cada um daqueles personagens.

Na terça assisti pela primeira vez a adaptação para o cinema do Fernando Meirelles. Com bastante atraso, visto que o filme foi lançado há muito tempo. Depois de experiências pouco exitosas, desisti de assistir adaptações de obras literárias que me tocaram para evitar a decepção, a sensação de perda de tempo. Curiosamente revivi as mesmas sensações de quando li o livro, porque com o tempo também aprendi a diferenciar as linguagens e sei que o cinema é uma outra proposta. Ainda prefiro a literatura, mas aprecio a linguagem cinematográfica e suas especificidades. O filme é uma pérola.

A genialidade de Saramago para descrever as idiossincrasias humanas é indiscutível. É um realismo fantástico que nos faz mergulhar na essência do "ser humano". O livro Ensaio sobre a cegueira me fez questionar essa essência. Fez com que eu me perguntasse há 13 anos atrás: O que é ser humano, afinal? Quando se perde o limite entre ser humano e ser animal? Que limiar é esse? Como podemos ser tão cruéis e ainda assim sermos humanos? Por que mesmo em situações limite, em que estamos todos "no mesmo barco" ainda queremos subjugar uns aos outros, por que temos sede de poder e desejo de humilhar? Por que somos tão sádicos?

Nunca encontrei as respostas. Acho que nunca saberei também, mas, de alguma forma, fazer estas perguntas já foi importante. Elas me levaram a outro lugar para além de mim e fizeram com que no meu cotidiano olhasse a vida e as pessoas com certa delicadeza pelo reconhecimento dessa nossa tão negada... fragilidade.

Mas o filme do Meirelles me trouxe uma outra reflexão. Menos profunda, talvez... mas não menos importante. Enxergar em terra de cego é benesse ou maldição? Ver o que os outros não podem enxergar é privilégio, é poder ou é algo que nos aprisiona em um mundo que é só nosso ou de poucos?

Não encontrei a resposta. O que sei é que às vezes, poder ver o que ninguém enxerga é libertador e em algumas ocasiões é desesperador. É solitário e angustiante. É como se tivéssemos o peso do mundo nas costas. É como nadar desesperadamente pra se salvar de não se sabe o quê.

Eu vejo coisas que são só minhas. Eu vejo coisas que só eu alcanço. E do que adianta ver e não poder compartilhar? É tão solitário. Então fico querendo o não-saber, o não-ver. Aprendi que o não-saber e o não-ver podem ser libertadores... mas ainda prefiro a solidão do enxergar. Acho que sempre terei uma mão amiga me tocando nessa hora, e se eu não tiver... ainda me restarão os papéis e o vento.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Odete, ouve o meu lamento.


O espetáculo "Odete traga meus mortos", de meu amigo Edu O. e Lucas Valentim parece ter reverberado na alma de todos que tiveram contato com ele-ela. Ninguém saiu ileso. Certamente houve quem tapasse os olhos e ouvidos, mas indubitavelmente os ecos de Odete ficarão ali dentro à espera do momento certo para ganhar os ventos e ressoar.

O impacto que Odete provoca nas pessoas vem justamente do fato de discutir um tema que inquieta a todos: a morte, a perda, a validade das coisas. É tudo uma coisa só. É coisa que agente é obrigado a conviver desde o momento em que nasce. É a única coisa que nós nascemos sabendo que vai acontecer. É a nossa única certeza inexorável.

Desde que Odete surgiu, e ela agora é como se fosse uma entidade materializada, tem me feito pensar. Penso na morte de todo dia. Nas pequenas e grandes perdas. No quão isso é tão corriqueiro e, contraditoriamente, assustador. Nestes "pensares" Odete também trouxe os meus mortos. Lembrei da minha querida avó, do meu querido Douglas, das minhas paixões da infância, das amizades indestrutíveis da adolescência, dos sonhos e planos da juventude, dos projetos profissionais, dos amores eternos, da inocência, dos quereres, das certezas, das verdades. Todos mortos ou agonizantes. Alguns ainda vivos por puro apego.

O modelo de Kübler-Ross, que define os cinco estágios da morte, para mim é ainda o que melhor explica os sentimentos envolvidos na perda. Qualquer perda. Apesar da teoria defender que as etapas podem não ocorrer na sequência inicialmente descrita - e que algumas pessoas não passam por todas elas -, eu ainda acredito que é assim mesmo que ela acontece com a maioria de nós.

Primeiro, a negação. Negamos até o limite máxino. Nos negamos a enxergar, a aceitar, a entender. Tapamos olhos e ouvidos. Fingimos, encenamos, insistimos em repetir que está tudo bem, que tudo continua no mesmo lugar. Enfim, negamos. Creio que esta é a etapa mais demorada, por conta do apego. O danado do apego que insistimos em ter com tudo que nos é caro... e algumas vezes com coisas que nem deveriam ser e que a gente só descobre depois do luto.

Depois vem a cólera. Nos revoltamos com o mundo, com o outro, com Deus, com o que estiver ao nosso alcance. Perguntamos "por que comigo?" Olhamos para fora e não para dentro. Buscamos sempre no externo, o que muitas vezes só encontramos dentro de nós. "O inferno são os outros", já dizia Sartre. Mas a intolerância às frustrações é algo que praticamente nasce com a gente. Tem gente que aprende a lidar bem com isso, mas tem gente que morre sem saber. E quando é assim, a gente responsabiliza o outro, até mesmo porque é mais fácil depositar a "culpa" em alguém que não seja eu. Esta etapa também é uma das mais difícies de se vencer, de ser ultrapassada. Há quem fique anos nela envenenando a alma... impossibilitando que qualquer coisa bonita possa nascer.

A terceira etapa é a barganha. Vamos negociar. Nos humilhamos, imploramos, oferecemos até o que não temos pra dar, o que não se pode dar. Fazemos promessas. Nesta hora entra Deus, entram os Orixás e todos os santos que existirem. Nesta hora deixamos tudo de lado: nossas crenças, nossos valores, nosso orgulho. O medo da perda, da morte das coisas é tão grande que vale qualquer sacrifício.

A penúltima etapa é a depressão. A tristeza nos consome, a dor é tanta que nos imobiliza. Lamentamos, choramos, recorremos a todos os amigos, nos isolamos... Toda a dor do mundo mora em nós. Ficamos sem chão, é como se o mundo desabasse em nossa cabeça. Tudo é ausência. Perdemos o sono, o apetite, o brilho. Viramos cinzas...

Por fim, chegamos à aceitação. Vivemos o luto da perda até sua última gota. Vamos ao fundo do poço e de lá ressurgimos de novo para a vida e para outras mortes. Quando aceitamos a perda - seja a perda da saúde, de um ente querido, do amor ou de um sonho -, nossa relação com o mundo e com nós mesmos muda. Nos fortalecemos e passamos para um estágio da vida em que tudo é possibilidade.

Como o ser humano é de uma complexidade ímpar, tem quem passe por todas as fases num curto período de tempo. Há quem leve anos. Uns, à medida que o tempo passa, vão aprendendo a lidar melhor com isso e já não sofrem tanto. Outros se embrenham num círculo vicioso e repetem insistentemente um padão comportamental nocivo, em que cada perda é como se fosse a primeira. Enfim... somos humanos e nunca iguais.

Voltando a Odete... não tive o privilégio de assistir ao espetáculo, mas ele-ela ficou em mim. Trouxe meus mortos. Ecoou e ressoou dentro de mim. Me impeliu à ação. Me fez enfrentar uma morte há muito vivida, mas ainda inacabada. Faltava alguma coisa... Enfrentei ela de frente: sem lágrimas, sem pesares, sem dor. Joguei a última pá de cal no caixão cerrado dentro da cova. Saí sorrindo de satisfação pela coragem. Alma alegre e feliz... tomando chá com bolachas. Foi libertador.

Odete trouxe meus mortos. E os teus, onde estão?


Ps.: "Odete, ouve o meu lamento" é uma canção de Vinícius Eliud e Herivelto Martins. A única versão que encontri foi este vídeo no Youtube na voz de João Gilberto, presente de Djean Felipe. Um achado.

sábado, 17 de abril de 2010

Mistérios do amor...

Hoje assisti diversas vezes o vídeo de uma criança soluçando por uma amor. Ela tem apenas 4 anos. Sofria e soluçava com tanta veracidade que eu fiquei chocada.
Imediatemanete pensei: que mistérios guarda o amor, ou isso que chamamos de amor? Como uma criança de quatro anos pode experimentar isso com tanta intensidade, pois seu sofrimento era real?
Lembrei das várias ocasiões em que este sentimento me consumiu. Lembrei de quando amor era tudo que eu queria e precisava para continuar viva. Revivi todas as paixões dilacerantes, enlouquecedoras...tudoemapenasumsegundo. E me vi naquela criança, que ainda trago em mim.
Amei e ainda quero e vou amar demais. Exercito o amor diariamente. Nos gestos, no pensamento, no meu exercício diário de viver. Amo sem constrangimentos, sem pesares. Sei amar e sei ser amada. Aprendizado cotidiano, exercitado minuciosamente do rair do sol ao descansar das estrelas.
Viva ao amor, viva aos encontros... viva a poesia que ele traz para as noites cinzentas, viva às cinzas que ele transforma em brasas ardentemente acesas.
Sou uma amante irremediável. Que assim seja, até meu último suspiro!
Celebremos os mistérios do amor...

sábado, 10 de abril de 2010

A validade das coisas

Como muitas vezes disse e não canso de repetir, sou uma pessoa privilegiada. Pela vida e pelas pessoas que tenho à minha volta.
Meus amigos são artistas. Artista mesmo e não é piada. Sempre gostei de artes e a vida foi fazendo com que meu caminho cruzasse com o destas pessoas, e sempre lembro do que minha avó dizia: "o rio só corre pro mar". Sempre adorei literatura e fui me apaixonando pelo mundo das artes através dos meus amigos.
Eu fui apresentada à dança por um dos mais especiais deles: minha paixão, minha referência, minha loucura e minha lucidez, Carlos Eduardo. Aprendi a apreciar a linguagem do corpo e toda poesia que ela carrega em si. Aprendo com ele sobre esta forma de estar poeticamente no mundo, me concectanto e interagindo de forma concreta e abstrata ao mesmo tempo. Não precisa ter lógica, não precisa entendimento... é só sentir.
Ontem ele estreou seu mais novo espetáculo "Odete, traga meus mortos", de título bastante original, como tudo que faz, e que discute uma questão que inquieta a todos: as ausências. Não pude ver a estréia, mas já soube que Odete mexeu com quem a viu chegar ao mundo.
Ela disse: "Eu nunca soube lidar com o prazo de validade das coisas." Isso é a cara do Edu... isso é a minha cara... isso é a sua cara, com certeza.
Parece que estou me vendo, sentada com ele em algum meio-fio de alguma calçada dos bairro da Barra em Salvador, a pensar sobre a vida, sobre as relações, sobre os encontros e desencontros, sobre as marcas que deixam em nós, sobre o amor, sobre a alegria, a amizade, a perda, as loucuras todas que nos encantam e tiram o sono. Ai que saudade de tê-lo ao meu lado na hora que me apetece...
Minha relação com esse amigo é coisa pra muitos posts. Já ensaiei vários, mas nunca consigo traduzir de maneira suficientemente boa a natureza da nossa relação... do nosso amor. Espero que um dia eu consiga. Mas isso não é conversa pra agora. Hoje é dia de comemorar a chegada de Odete, que veio quietinha, sem febres - como dona Judite -, mas que com certeza veio pra ficar e pra marcar.
Viva a Odete, viva a vida que ela renova, a alegria que ela provoca. Que tenha vida longa... que alongue vidas. Evoé!

"Quem ilumina aqui sou eu!"

E foi isso que de fato ela fez... iluminou!!! Iluminou o palco e iluminou a vida de quem foi lá para vê-la. A luz daquele dia era diferente. Nunca havia visto Maria Bethânia tão no palco como ontem.
Ela sempre é incrível e seu canto penetra e inebria a todos. Mas ontem, o que testemunhei foi uma outra Bethânia, visivelmente apaixonada, alegre, lépida e faceira dançando, sorrindo, tocando as pessoas por dentro e por fora e se deixando tocar. Seu brilho estava diferente. Seu riso, sua alegria eram evidentes. Quando cantarolou ou versos "do jeito que você me olha, vai dar namoro", surpreendeu a todos e provocou reações que só ela é capaz. Amor, festa e devoção: tudojuntoemisturadonumapessoaso.
Quando vejo Maria Bethânia cantar é como se eu voltasse a ser criança em Santo Amaro. Como se eu me visse de novo indo pra novena de Nossa Senhora, brincando no parque na frente da prefeitura, andando na rua do Amparo tocando as campanhias das casas, sentando na praça em frente ao chafariz. Não é tristeza, não é melancolia... é a nítida sensação de que o tempo passa e com ele leva muita coisa, mas traz outras igualmente bonitas. Lembrança sem tristeza... E foi lindo lembrar e celebrar com sorrisos e não com lágrimas, apesar da emoção ter tomado o corpo.
A noite de ontem foi pura poesia. Alegria inconteste: pelas companhias, pela luz que nos ilumina(va) naquele momento e pela certeza de a vida me leva sempre para o caminho onde as luzes estão acesas e a escuridão não mais assusta.

quarta-feira, 7 de abril de 2010


Tenho sentido uma paz tão grande ultimamente. Eu que era cheia de urgências. Que precisava delas para viver... porque senão a vida não tinha graça. Emoção, muita emoção.

Agora a paz me comove. A tranquilidade de viver sem sobressaltos, cada dia de uma vez... sorvendo sua doçura e acidez com delicadeza. Ai que delícia!

Todo dia repito pra mim, setecentasmilvezes, que sou feliz. Me sinto privilegiadapor tudo que tenho: pelos amigos, pela família que "constituí", pelo meu trabalho, pela minha casa, pelo meu coração, pelas minhas escolhas. Uma calmaria só...

Acordar todos os dias com alegria por estar vivo, por ter amor e por ter paz não tem preço. Não me canso de agradecer. Não me canso de pedir que assim permaneça: tranquilo e cheio de emoção.

Amém...