sábado, 19 de fevereiro de 2011

As quatro irmãs (Psicoantropologia Fake) - Caio F.

Reza não muito antiga lenda que homossexuais masculinos de qualquer idade ou nação – além de bofe, bicha, tia ou denominação similar – dividem-se em quatro grupos distintos. Seriam na verdade, sempre segundo a lenda, quatro irmãos que atendem por nomes femininos. A saber, e essa ordem arbitrária não implica cronologia nem preferência: Jacira, Telma, Irma e Irene.

Para começo de conversa, vamos à mais popular delas: a Jacira. Suficientemente conhecida, seja pelo personagem Jaci (que no romance Onde Andará Dulce Veiga?, de minha autoria, em dias de arco-íris recebe uma Oxumaré de frente e transforma-se na devastadora Jacira) ou pelos louváveis esforços do jornalista Eduardo Logullo em divulgá-la através da coluna Joyce Pascowitch, na Folha de São Paulo. Das quatro irmãs, Jacira é aquela que todo mundo sabe que é homossexual, e ela mesma – que refere-se a si própria, seja qual for seu nome, sempre no feminino – acha ótimo ser. A Jacira usa roupas e cores chamativas, fala alto em público, geralmente anda em grupos de amigos também jaciras como ela, todas exercendo o velho hábito de “fechar”. Como diria Antônio Bivar, é uma pintosa. Uma pintosa assumida, despudorada. Sempre foi bicha, adora ser bicha e, maniqueísta como ela só, continua achando que a humanidade divide-se entre bofes e bichas, categoria esta última na qual se inclui. Com orgulho. Superinformada, embora não leia muito (existem Jaciras nigrinhas,analfabetas), ela sempre sabe – de orelhada – tudo que está em cartaz na cidade. Fofocas que insinuam viperinas dubiedades sobre a sexualidade alheia. Ao entrar em qualquer ambiente, uma Jacira sempre é imediatamente notada. O que satisfaz seu principal objetivo na vida: aparecer.

Bem menos luminosa e sem graça que a Jacira é: a Telma. Seu nome provavelmente originou-se daquela versão que Ney Matogrosso cantava: “Telma eu não sou gay/ o que falam de mim são maldades”, algo assim. Ao contrário da Jacira, a Telma é infelicíssima. Ela bebe. Bebe para esquecer que poderia ser homossexual. O problema é que, exatamente quando bebe, mais exatamente ainda depois do terceiro ou quarto uísque, é que a Telma transforma-se em homo. Embriagada, Telma ataca. E dramaticamente na manhã seguinte não lembra de nada. Aquela Jane Fonda de The Morning After perde. Embora a Telma fique muito erotizada em estado etílico, ela sempre nega que é, e negará até a morte. A única solução para uma Telma empedernida seria a psicanálise (que ela, a mais doente, acha que não precisa) ou parar de beber. O que, por tabela, significaria também parar de trepar. Pobres Telmas – categoria da qual países como o Brasil (vide academias de ginástica, futebol, chopadas com o pessoal da repartição, etc.) está cheio.

Menos trágica, mas ainda mais complexa, é a terceira irmã: a Irma. As Irmas não são exatamente infelizes – pelo menos, não tanto quanto as Telmas --, embora bem menos felizes que as Jaciras – que aparentam ser e realmente são felicíssimas. Irma é aquela que todo mundo jura que é, incluindo a mãe, a irmã e a esposa (Irmas casam muito) – mas ela mesma não sabe que é. Não sabe ou finge que não. A Irma dá quase tanta pinta quanto a Jacira, adora todo o folclore gay, de Carmen Miranda a show de travesti, passando por concurso de miss, Mae West, leopardos, James Dean e Marilyn Monroe. Estranhamente não “faz”. Quando solteira ninguém de sexo algum poderá afirmar – muito menos provar – que já fez sexo com uma Irma. Ou se fez, não prestou muito, pois há quem diga que Irmas costumam ser mal-dotadas, impotentes, dessas assim. Pode ser. A verdade é, quando casadas, as esposas das Irmas raramente apresentam um ar satisfeito. Sexualmente satisfeito.Irmas costumam ser afáveis – ao contrário das problemáticas Telmas, introvertidas e depressivas. Adoram Jaciras, apesar destas gostarem de chamá-las, sobretudo em público e aos gritos, de “queridaaaaaaaa”. É que toda Jacira sabe – ou supõe – que no fundo toda Irma é tão Jacira quanto ela. Mas como as Telmas, Irmas fogem de definições. E ao contrário das Telmas, muito pecadoras, podem até morrer sem se atreverem a provar os prazeres do – para citar uma Jacira clássica – amor que não ousa dizer seu próprio etc.

Inicialmente limitada a essas três, a lenda recentemente incluiu a existência de uma quarta irmã: a Irene. Tão assumida quanto a Jacira, ao contrário desta, a Irene não dá pinta. Ela é, sabe que é, mas não exibe nem constrange. Pode até usar brinquinho na orelha, dar alguma rabanada menos comedida, ou mesmo – de brincadeira – referir-se a si mesma ou uma amiga no feminino. Mas a Irene é tranqüila. Geralmente analisada, culta. Bom nível social, numa palavra – Irene parece serena em relação à própria sexualidade. Que é diversificada. Podem ter longos casos, morar junto, ou viverem certas idiossincrasias eróticas. Só gostarem de working class, por exemplo, ou de adolescentes, choferes de táxi ou estudantes de Física. Ou de Irenes como elas: são as Irenes lésbicas, bastante comuns e conhecidas, literalmente, como gays. Telmas e Irmas escondem tudo da família, vizinhos e colegas, embora a Irma não tenha nada a esconder. Jaciras não escondem coisa alguma, explicitérrimas. Irenes deixam no ar: se alguém perceber, que perceba. Educação é básico para elas. Serenamente educadas, pois, às vezes até casam. Com mulheres.

Entre as quatro, desgraçadamente as relações são turbulentas. Jaciras, por exemplo, adoram seduzir Telmas. Estas (quando sóbrias, claro) têm medo pânico de Jaciras. Irenes por sua vez, nutrem uma espécie de carinho apiedado pelas desventuradas Telmas – e isso pode até resultar numa ardente noite de paixão entre ambas. Da qual naturalmente a Telma jamais lembrará, embora tenha feito horrores. O grande risco que toda Irene corre é apaixonar-se por uma Telma: comerá o pão que o diabo amassou, até entrar noutra. Com a Irma, de quem Irene também gosta, o risco não é tão grave: Irenes sabem que com Irmas não rola. E pode assim transformar tudo numa aparentemente saudável “amizade viril”: as duas fingindo, para usar a terminologia antiga, que são bofes. Há quem creia.

Jaciras não simpatizam muito com Irenes, acham-nas “metidas”. A recíproca também é verdadeira: Irenes acham Jaciras pintosas demais, apesar de divertidas, folclóricas. E inconvenientes. E com a imperdoável mania de roubar namorados alheios. Irenes adoram namorar, pegar na mão, ir ao cinema, comer pizza, fim de semana em Ilhabela, ver TV – tudo isso together. Já Telmas e Irenes, entre si, são hostis. Talvez uma tema o julgamento da outra, vai saber. Irmas, no entanto, podem ceder aos insistentes encantos das Jaciras. Existem mesmo certas Irmas que algumas Jaciras – para ódio das Irenes – juram já ter feito. Jaciras, por sua vez, não raramente invejam Irenes, que sempre aparentam certa prosperidade (ao contrário das Telmas), com um cotêzinho decadente). Irenes mais neuróticas gostariam, de vez em quando, de serem confundidas com Irmas. E Telmas costumam sentir cegos, súbitos impulsos de desvendar suas almas abissais para os ouvidos compreensivos e ombros amigos das Irenes. Na verdade, Telmas, Irenes e Jaciras invejam um pouco aquela impressão (nem sempre verdadeira) de pureza que toda Irma passa. Assim como se estivesse por fora de qualquer grupo de risco.

A propósito, já que abordamos esse desagradável tema: embora aparentem ser as mais perigosas, no que se refere a riscos, e apesar de promíscuas (a promiscuidade esta implícita na jacirice). Jaciras cuidam-se muito. Verdade que com camisinhas nacionais, daquelas que arrebentam na hora H, na primeira golfada. Irenes sempre carregam na frasqueira sortido estoque de poderosas camisinhas estrangeiras, compradas em suas viagens. Com a idade se tornam um tanto maníacas com higiene, meio obcecadas com safe sex. Certas Irenes não fazem há anos, vivem em permanente estado de nervos. Já as Irmas como não fazem, ou quando fazem é tão escondido que ninguém sabe dizer como fazem, não se preocupam com isso. O problema, novamente, são as Telmas. Impulsivas e atormentadas, nunca estão prevenidas. Jamais podem prever quando passarão do quarto uísque ou da décima quinta cerveja, e isso normalmente acontece em horas que as farmácias estão fechadas. Telmas, portanto, não carregam camisinha. Sequer as têm no banheiro, tamanha a negação. Enlouquecidas na cama (uma Telma com tesão vale por cem Jaciras), Telmas fazem coisas que Madonna (ídolo das Jaciras) duvidaria. Essa representa outra secreta tortura mental das Telmas: como às vezes realmente não lembram do que fizeram (por lapso etílico), têm sempre rabo preso e um medonho medo de serem positivas.

Irmas sempre são negativas. Ou aparentam ser. Acontecem surpresas, pois ser Irma não significa necessariamente ser casta. Irenes via de regra lidam bem com um teste positivo: espiritualizam-se, viram vegetarianas, zen-budistas, fazem ioga, procuram o Santo Daime ou Thomas Green Morton. Lêem muito Louise Hay, e até se recusam a tomar AZT. Jaciras muitas vezes negam-se decididamente a fazer O Teste: têm uma certeza irracional de que daria positivo. O que nem sempre é verdade, visto que nada mais forte que santo de Jacira.

Vírus e suas saias-justas sem nesga à parte, na verdade a AIDS não mudou muito o comportamento das quatro. Elas são arquetípicas, atávicas, eternas. Freud, por exemplo, na opinião geral era irmésima. Já Platão parece ter sido uma boa Irene. Ninguém colocaria em dúvida a jacirice de Oscar Wilde. Rimbaud, por sua vez, dá a impressão de ter começado como Jacira (quando chegou a Paris) para transformar-se – o que é raro – em Telma ( na Abissínia). Já Verlaine, teria sido uma Irma que se ajacirou. Clássicas ou contemporâneas, nenhuma delas deve ser criticada por isso. À sua maneira, cada uma busca apenas essa coisa – o Amor: a Ancestral Sede Antropológica. O que pode acontecer (vide Rimbaud e Verlaine) são transmutações: Irenes que se ajaciram; Irmas (com tendência etílica) que viram Telmas; Telmas que – bem comidas – se irenizam ou mesmo ajaciram e etc. As mutações são tantas quanto as do I Ching. Há quem diga que essas novas têm até nome, como as Juremas (Jaciras que se tornam Irenes) ou Jandiras (Jaciras exacerbadas tipo Clóvis Bornay).

Pode ser. Mas segundo nossos estudos, Jacira que é Jacira nasce Jacira, vive Jacira, morre Jacira. No fundo, achando o tempo todo que Telmas, Irmas e Irenes não passam de Jaciras tão loucas quanto elas. E talvez tenham razão.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A morte do cisne

A coreografia "A Morte do Cisne" foi criada por Mikhail Fokine em 1905 especialmente para a famosa bailarina russa Anna Pavlova, membro do Balé Imperial Russo. Foi seu primeiro sucesso e se tornou sua marca registrada. A trilha, também criada para o espetáculo, é de Cammille Saint-Säens.

No programa "Se ela dança eu danço", um destes reality shows que viraram febre, um moço chamado Jonh Lennon da Silva tem o "atrevimento" de querer dar a sua interpretação à obra clássica. Morador da periferia e dançarino de street dance, ele conheceu a trilha do espetáculo num projeto vocacional criado pela Prefeitura de São Paulo que leva as mais diversas linguagens artísticas para os CEU´s espalhados pela cidade. É um projeto interessantíssimo de arte-educação.
Mas voltando à ousadia de Jonh Lennon... ele foi ao programa do SBT mostrar "sua dança". Parecia não ter preocupações estéticas ou intimidar-se com as piadinhas e sarcasmo do jurado. Ele estava autoconfiante. Eis um registro de sua audição:

Jonh Lennon me fez chorar pela beleza da sua dança, da sua sensibilidade e ousadia... mas, principalmente, por me dar a certeza do poder transformador da arte, do seu caráter democrático, da sua capacidade de revelar.

Fora isso, o vídeo permite uma série de outras análises. É um vídeo educativo, ousaria dizer. Mas agora o que importa pra mim é o sentir... só sentir, sem analisar. Sinta também...

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Minha herança

Fazia tempo que não me inspirava a escrever. Nenhum fato, nenhuma poesia, nenhum gesto, nenhum sentimento, nenhuma canção. Estava vazia de palavras.
Eis que hoje vivi uma epifania das mais belas. Uma canção me tocou... profundamente. No primeiro acorde percebi que ela era especial. Ouvi a primeira vez e fiquei parada, atônita. Ouvi a segunda vez... e fui tomada por uma emoção tão bonita. Fui lembrando de tanta coisa: de mim, dos meus amigos, meus amores... da minha mania de cuidar. Lembrei do meu jardim... dos passarinhos de asa quebrada que lá foram parar e nunca mais saíram. Lembrei dos jardins alheios em que eu também fiz morada. Chorei daquele jeito bonito... em que a lágrima vai caindo sem a gente perceber, até sentir o sal na boca. Sorri de contentamento... quis dividir. Eu divido... porque dividindo eu somo, multiplico.
Divido esta canção com aqueles que amo. Meus pardais selvagens... de quem eu sou herdeira e para quem eu espero deixar alguma herança.


P.S.: Numa brincadeira esta semana, eu questionava Deus por que não havia me feito herdeira. Ele me fez...

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Aos caminhos, eu entrego nosso encontro


Não me aproximo porque, veja bem, sabe lá quem habita a tua solidão. Hesito. Recuo. Me afasto tristíssima. E te imagino em poses e sorrisos, voz grave e cabelos desgrenhados, preso nas minhas fantasias mais loucas e movimentadas. Numa delas sou um bichinho invisível, com asas, que adentra tua casa e te observa em segredo. Faço o contorno do teu corpo todo com os olhos, parada contra a parede do teu quarto, imóvel, enquanto tu te atiras na cama. Cansado. Tu olhas para o teto imaginando mil coisas, memórias, compromissos, desejos, saudades. Te fito com dor. A luz do abajur faz sombra na tua pilha de livros, que folheei um dia e quis pedir emprestado mesmo sabendo que não havia intimidade para pedidos. Por razões que desconheço, nossas aproximações foram sempre pela metade. Interrompidas. Um passo para a frente e cem para trás. Retrocessos. Descaminhos. Procuro sinais de algum amor teu. Vestígios de noites passadas. Tu não me vês, estou incógnita a te observar. Como sempre estive, olhando pelas janelas, de longe, coração apertado. Nós poderíamos ser amigos e trocar confidências. Assistiríamos a filmes, taça de vinho nas mãos, e tu me detalharias as tuas paixões e desatinos. Nós poderíamos ser amantes que bebem champanhe pela manhã aos beijos num hotel em Paris. Caminharíamos pela beira do Sena, e eu te olharia atenta, numa tentativa indisfarçável de gravar o momento e guardá-lo comigo até o fim dos meus dias. Ou poderíamos ser apenas o que somos, duas pessoas com uma ligação estranha, sutilezas e asperezas subentendidas, possibilidades de surpresas boas. Ou não. Difícil saber. Bato minhas asas em retirada. Tu dormes, e nos teus sonhos mais secretos, não posso entrar. Embora queira. À distância, permaneço te contemplando. E me pergunto se, quem sabe um dia, na hora certa, nosso encontro pode acontecer inteiro. Porque tu és o único que habita a minha solidão.

Paula Pfeifer

P.S.: É engraçado quando você encontra alguém que traduz exatamente o que querias dizer. É como se você não estivesse só...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A hora da estrela


"- Por que é que me pede tanto aspirina? Não que eu esteja reclamando, embora isto custe dinheiro.
- É para eu não me doer.
- Como é que é? Hein? Você se dói?
- Eu me doô o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro,não sei explicar."

Clarice Lispector e sua simplicidade assustadora para falar de coisas complexas. Ela me assusta...