Epifania e.pi.fa.ni.a s.f. 1 Aparição ou manifestação divina. 2 súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. Alumbramento a.lum.bra.men.to s.m. (alumbrar+mento) 1 Ação ou efeito de alumbrar. 2 Inspiração sobrenatural, iluminismo.
domingo, 28 de novembro de 2010
Estranho rapaz
Quando ele chegou, o estranho rapaz
seu olhar estrangeiro olhou para mim
Eu nunca tinha ouvido a fala do amor, o frio o calor
logo entendi,
quando o rapaz,
seu olhar estrangeiro olhou para mim.
Seu olhar estrangeiro falava uma língua
que eu logo entendi
senti no meu corpo uma coisa tao louca,
que eu nunca senti
Ele olhava minha boca,
ele olhava meu corpo, ele olhava em meu seio,
olhava no meio, bem dentro de mim.
No princípio o perigo,
depois eu olhava, eu olhava,
não tinha receio.
Desejava, queria no precipício,
abrir minhas asas desvendar o segredo.
Seu olhar penetrante,
invadia ofegante no meio de mim
Rasgava o meu ventre, meu corpo inteiro,
me vendo por fora, me vendo por dentro,
do principio ao fim,
Depois me olhou, me olhou,
Me olhou de baixo para cima,
Em cima, embaixo, dentro de mim,
Me queimando, queimando,
O céu no inferno,
O paraíso é assim,
Onde passou tão pouco deixou,
Só um rastro de fogo queimando em silêncio,
O incêndio do amor.
Tatuagem
Partiu. Fez questão de nada esquecer, pra não lembrar. Não olhou para trás. Não sorriu. Crispou o cenho e andou a passos firmes. Fechou a porta, trancou por fora. Jogou a chave embaixo do tapete, para que "quem sabe um dia" alguém encontre. No caminho foi deletando da memória as lembranças amargas e as doces também. O doce e o amargo são feitos da mesma matéria, pensou. Não deixou bilhete, nem recado com batom no espelho grande do quarto. Deixou apenas duas mãos tatuadas com o suor e a lascívia do sexo intenso na cabeceira da cama. Ali proferiu sua sentença. Ele partiu e ela jamais o esqueceria em noites de calor ou frio. Ao chegar em casa ela nada encontrou, a não ser as mãos, ali... imóveis, tatuadas. Única lembrança de um tempo bem vivido, a seu modo. Não procurou nada além. Como um fugitivo, ele não deixaria rastros. Não queria ser encontrado. As mãos na parede era seu código de vida e luxúria. Não lamentou. Não chorou. Não, não, não. Lembrou que só de nãos vivera aquilo. Não querer. Não poder. Não sonhar. Não viver. Não. Esqueceu-se dos sins. Não, não os esqueceu. Apenas não conseguia dizê-los. O “sim, eu quero” ficou preso em algum lugar dentro de si. Pousou suas mãos sobre o desenho disforme na cabeceira da sua cama e sentiu pela última vez a vibração daquele ser que por algum tempo lhe emprestou asas. Sorriu de contentamento e seu corpo estremeceu como no compasso das asas de um beija-flor. Foi até a cozinha e se armou. Mas água e sabão não apagariam a lembrança daquelas mãos que manchavam a parede. Lembrou que água e sabão jamais limpariam teu corpo e tua alma das marcas que aquelas mãos haviam deixado. Como cicatrizes, elas ali permaneceriam... até que o tempo e as mudanças que ele traz, na casa ou no corpo, a encobrissem ou disfarçassem. Mas sabia que ainda assim elas estariam lá. Para lembrar a partida. Para lembrar os nãos. Para lembrar os sins, que disse sem dizer. Para lembrar as asas que um dia tivera. Para lembrar que a chave estava embaixo do tapete. Do lado de fora. Ela ali, do lado de dentro, apenas gritaria para quem batesse de novo à sua porta: - As chaves estão aí, pode entrar.
sábado, 27 de novembro de 2010
O Rato
- Você prefere lasanha ou ravióli?
- O meu dia só existe porque você existe dentro dele.
- Garçom, por favor .
- Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.
- Eu quero batatinha frita.
- Hoje existir me dói feito uma bofetada.
- Sem cebola, por favor.
Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia - uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. Mas o rato está em cima; ele estava em baixo, o sexo enrijecido, a mulher se movimentando sobre ele. Uma lassidão de coisa cujo destino é possuir, mas submetida à posse, quem sabe ampliada no escuro. Expandia-se dentro de si num movimento de revolta e nojo. Muito próximo do seu, o rosto da mulher aberto numa quase careta de gozo, os dentes manchados de cigarro espiando por entre os beiços cobertos de batom que as gotas de suor faziam escorrer. Apertou-a contra si, as mãos comprimidas na bunda áspera. O sexo explodiu numa chuva densa, enquanto olhava estupidamente para o fio de luz coado pela janela.
- Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.
- Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.
- Infelizmente o camarão acabou.
- Estou completamente cheio.
- Bem molezinha, com bastante sal.
- Mas este prato está sujo, que absurdo!!!
- Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos – você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora, neste bar, sozinho, longe de você e de mim.
O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feitos todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. Aqui e agora, pedindo mais uma cerveja ao garçom vestido de branco, bigodes retorcidos para baixo. Cercou-o devagar: um cuidadoso exame de comprador investigando a mercadoria, a medir de cima abaixo, da cabeça aos pés, a largura do tórax, a grossura das coxas, as mãos de dedos grossos nas juntas, os olhos escondidos debaixo das sobrancelhas, a barba forte azulando o rosto -como se conseguisse ir além da calça azul e da camisa branca limitando a carne. O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.
- Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.
- E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, compreende?
- Temos peixe. Filé de peixe, serve?
- De repente parece que todo mundo vai começar a morder a gente.
- Feijão não, eu odeio feijão.
- Uma merda, tudo. Uma grande merda.
Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. Ela sorriu de lado, a língua metida na falha entre os dois dentes. Concordou. Meteu a mão no bolso, procurando a carteira, e sentou o quase toque nos seus sapatos. Cerrou os dentes, o sexo latejava, estendeu a mão e tocou. Imóvel -o homem. O indecifrável dos olhos, do vinco marcando a boca, espreitando o, tenso. Eu pago,disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
- Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?
- Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.
- Temos sopas, também. Madame é quem sabe.
- Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.
- Arroz? Mas eu só queria batatinha.
- E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?
- Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.
Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. Aquela inconsciência de si mesmo, a ausência de indagações, de marcas - a isenção o deixava paralisado, como uma ferocidade inesperada: um animal, o homem nu, estendido sobre a cama. Tocava o sexo, e o sexo vibrava. A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. Alinhou um a um os farelos na esquina, formando um nome com o líquido da urina. A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou acorrer para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.
- Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.
- Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
- Quem sabe uma feijoada?
- Daqui a pouco vai começar a chover de novo.
- Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.
- Quer fazer o favor de me alcançar o copo?
- Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.
Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto - o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.
- Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.
- E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.
- Não? Quem sabe então um... um... um...
- Não adianta insistir. Agora eu vou.
- De creme, não. Quero de morango.
- E essa coca-cola que não vem?
- Sei lá, vou dormir que é melhor.
Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro -o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de sua próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.
Caio F.
In: O Inventário do Ir-remediável.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Aos que já caíram...
Trecho do conto que dá título ao livro.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Inventário do (Ir)remediável - Caio F.
Para Maria da Graça Magliani
Era uma menina. Embora não quisesse, quase desvairada na negação indireta, recusando atitudes e palavras que, justamente por afastadas, sublinhavam a sua condição. Aos olhos dos parentes, alheios a seu profundo - mais profundo ainda talvez porque inconsciente, resultante quem sabe de alguma remota frustração, como ia dizendo, seu profundo ressentimento tomava forma como em todas as meninas: algo meio vago, quase informe, acentuado vezenquando por lacinhos e babadinhos, como se as frescuras no vestir pudessem compensar o que lhe faltava: a forma. Ah como recusavam a sua densidade, como supunham ultrapassá-la quando, na verdade, sequer chegavam à sua periferia. Principalmente: como erravam ao tentar acertar, suas;atitudes de curva até o centrozinho dela (que eles ignoravam todo áspero e espinhento) fazendo-se queda lenta, desequilibrada, mesmo grotesca -irremediável queda. Ela era, pois, o ser mais só daquela casa. Isso equivale a dizer que era também o mais só do mundo, já que seu ambiente limitava-se àqueles dois pais e àqueles quatro irmãos equilibrados precários em pares de longuíssimas pernas, que serviam para lançar no rosto da menina a sua pequenez. Ah como eles eram herméticos. Mesmo amigos com quem trocasse desditas, amigos miúdo-gigantescos como ela, não os tinha. Vivia num apartamento desses enganchados em edifícios cinzentos, tão vazio de cores quanto de crianças. Além disso, ainda não havia apreendido o grande desencontro das palavras -portanto não poderia comunicar-se de maneira adulta, posto que a maneira-adulta-de-comunicar-se trata-se de um constante dizer o que não se quer, pedir o que se tem e dar o que não se possui. Também nos gestos, ela ainda não conseguira precisar-se, adquirindo aquela dureza que não assusta aos outros. Toda inexperiente de membros, ela enrolava-se em braços e pernas, enredada em movimentos que absolutamente descontrolava. Subjetiva e objetivamente, a menina era tremendamente solitária.
Foi quando apareceu o gato. A natureza dos gatos é parecida com a das meninas: também eles possuem aquela ferocidade mansa, toda contida e dissimulada ao pedir leite roçando as costas contra as pernas das pessoas. A menina só era amorosa quando faminta, fazendo-se lânguida, quase erótica. Saciada, tanto se lhe dava estar com aquela família alta e magra ou outra, baixa e gorda. Como ponto de contato, havia ainda aquela lucidez desesperada, portal de loucura, nas noites de lua cheia. Ela chorava, ele miava. Incompreensão da própria angústia, uniam-se no ultrapassar de seus limites, iam além, muito além, completamente sós dentro do apartamento - quem sabe do universo -, ela gritava, luzes acendiam, gestos precisos acariciavam lugares imprecisos; ele miava carente de carícias, de tentativas de compreensão, incompreendido, incompreensível. O berro uníssono fazia as paredes incharem, prenhes.
Os olhos castanhos dela encontraram os olhos verdes dele numa manhã de chuva. Todo sujo de lama, ele fora encolher-se exatamente em frente à porta onde havia uma espera em branco. Comunicaram-se. Ela não tinha palavras. Ele tinha unhas afiadas. Ela tinha dentes nascendo, sua arma em gestação contra o mundo. Ah como se amaram violentos e ternos em unhadas de paixão, dentadas de lascívia, mão sobre o pêlo amarelo, cabeças unidas - ele estacionado em evolução no ponto onde ela estava, mas ultrapassaria. Desde o início, ela fora em potencial maior do que ele. Tinha perspectivas, ao passo que ele estava para sempre confinado às quatro patas, ao rabo, às duas orelhas, aos seis ou oito fios de bigode.
Mas inconscientes desse desencontro, doavam-se inteiros, ignorados, ignorantes - brutais e absolutos em sua posse calada.
Até que chegou a gata. Os pais tiveram o raciocínio lógico de que um gato, mais que qualquer coisa no mundo, precisa de uma gata. E a trouxeram. Ela insinuou-se fêmea, gata de loja de animais, guizos, laçarotes, miando esquiva roçava o corpo contra as paredes, delicadíssima no arquear do dorso, formando uma curva tão sutilmente prometedora que a menina se espantava toda de tanto cinismo caramelado. E começou a disputa. Desde o início, a menina estava derrotada - ah como os parentes não a compreendiam. Ela -indefinida, meio tosca -insabia que para conquistar era necessário ser dissimulada como a gata. Ela era completamente objetiva nos seus desejos: se queria agarrar o gato, não se perdia em tramas e atitudes –ia lá e agarrava a meta. Que se esquivava, agora, mais propenso às ternuras menos ostensivas da gata.
Findo o período de namoro, o cio chegou e a gata e o gato possuíam-se despudorados pelos cantos, a menina incompreendendo que ela mesma não era uma gata, e que só poderia, assim mesmo futuramente, e talvez, possuir naturezas como a sua. O problema é que ela nunca tinha visto um menino. Sua única oportunidade de amar fora o gato. Que se tornara absoluto como jamais pirulito ou boneca haviam sido.
Mais só ainda - ela chegou então à atitude extrema. Talvez por influência da gata, aprendeu a dissimular, e aproximou-se toda meiga do gato que tomava leite. Foi tudo premeditado, ou tão espontâneo que a preparação estava implícita. E apertou. De uma só vez. Mais com a força que teria, propriamente, do que com a que dispunha no momento. Ele não miou nem estrebuchou.
Apenas morreu. Sem adjetivos.
Ela ficou olhando o corpo mole, desafiando-se com a gata que farejava o companheiro. Havia uma réstia de sol sobre o tapete. A menina encaminhou-se para lá e começou a brincar com uns cubos coloridos. Não descobriram o autor do crime. Ela não chorou. No mesmo dia, disse a primeira palavra: ato. Depois começou a crescer crescer crescer. Até que casou, teve três filhos, comprou um automóvel, um apartamento de cobertura no Guarujá e uma casa em Poços de Caldas.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
O homem que sabia Djavanês
Eu tinha chegado fazia pouco ao Rio de Janeiro e estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro. Até que um dia, lendo "O Globo", deparei com este anúncio: "Precisa-se de um professor de djavanês".
A audição das músicas de DJ Avan sempre provocou em mim puro mal-estar físico. Mas, enfim, precisava de grana e decidi fazer o possível para vencê-lo. Naquela semana, fui a todos os barezinhos com música ao vivo da cidade. Perdi a conta de quantas vezes escutei "e o meu jardim da vida ressecou, morreu" ou "amar é um deserto e seus temores". Foram sete dias de tortura; contudo, saí deles com o djavanês na ponta da língua. Em vez de mandar meu currículo, achei que conviria visitar o endereço indicado no anúncio.
Era um tríplex de cobertura, decorado com muito dinheiro e mau gosto ainda maior, num dos bairros mais caros do Rio. Apresentei-me como professor de djavanês e, após ser submetido a inquérito pelos empregados, fui levado à presença do patrão, o doutor Albernaz. Ele me recebeu com um sorriso visivelmente irônico. "Então o senhor é professor de djavanês, hein?" "Sim, sou. Formado em djavanês e com mestrado em beregüê. Tive dez com louvor na minha tese sobre a influência de Carlinhos Brown na obra de James Joyce." A tese, obviamente, não existia, mas o doutor Albernaz pareceu acreditar na conversa. "Então, só o senhor pode me ajudar. Ouça isto, por favor" - e pôs nas minhas mãos uma coletânea do DJ Avan em CD. Ao notar minha cara de ponto de interrogação, ele contou sua história. "Pouco antes de morrer, meu pai me entregou esse CD e disse: 'Filho, tenho certeza de que DJ Avan canta coisas muito profundas, mas ouvi suas músicas durante anos e nunca consegui entender porra nenhuma. Só podem ser segredos iniciáticos transmitidos da maneira mais hermética possível. Descubra o significado e você obterá a chave da felicidade'."
O doutor Albernaz abriu o encarte do CD e me mostrou uma das letras: "'Obi, obi, obá. Que nem zen, czar. Shalom Jerusalém, z'oiseau'. O que é isso?". Eu estava tenso com a pergunta do doutor Albernaz. Tantas músicas do DJ Avan e o velho tinha de querer saber o que significava a letra de "Obi"? Desgraçado. Se ainda fosse aquela do "o amor que é azulzinho", mas era tarde. Ele tinha os olhos fixos em mim: queria respostas. Todo o sucesso da minha empreitada dependia de uma explicação convincente e imediata.
De repente, uma idéia. Começo: "Veja bem. 'Obi' é certamente uma referência a Obi-Wan Kenobi, o sábio de 'Guerra nas Estrelas' interpretado por sir Alec Guinness. 'Obá', por sua vez, remete a 'Djobi Djobá', sucesso dos Gipsy Kings. DJ Avan buscou contrastar o lado luminoso e britânico da força com os mistérios nômades da alma cigana. A mesma tensão dialética pode ser verificada no verso subseqüente, 'que nem zen, czar': a contemplação espiritual dos monges budistas e o poder absoluto dos czares. Perceba como tese e antítese se resolvem lindamente na síntese do verso seguinte: 'shalom Jerusalém' é a paz do espírito na divina cidade. É ela que faz a alma se elevar aos céus, como um pássaro ('z'oiseau')".
Os olhos do doutor Albernaz se arregalaram enquanto eu falava. Dois segundos depois de eu terminar, ele gritou: "Que maravilha! Sabia que havia algo de muito profundo nessa letra! O senhor é um gênio da hermenêutica, um mestre do djavanês!".
Passei a tarde inventando explicações para todas as outras letras do CD - Açaí guardiã..., Kremlin-Berlim-pra-não-dizer-Tel-Aviv..., índio cara-pálida cara de índio... Citei Joyce, Pound, Oswald, Glauber, Zé Celso, Hélio Oiticica e Odair Cabeça de Poeta: name-dropping é comigo mesmo.
Daí por diante, minha ascensão social estava garantida. Eu era o único intelectual do país capaz de traduzir a transcendência da inguagem de DJ Avan. Tinha prestígio acadêmico e subsídio do Ministério da Cultura; gostosíssimas estudantes de lingüística rasgavam as roupas e se atiravam aos meus pés. Mas troquei tudo por um violão, sandálias de couro cru e um penteado novo. Mudei até meu nome graças ao djavanês. Hoje me chamo Jorge Vercilo e sei que "nada vai me fazer desistir do amor"...
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Vai passar
Toda que vez que vou à sua casa, Marina Lima é trilha sonora certa. Quando esta música toca... abrimos um sorriso, nos abraçamos e cantarolamos com os olhos fechados lembrando de atos e fatos. Cumplicidade de quem aprendeu com a vida que tudo passa: menos as coisas e pessoas que... Mas mais que isso, essa música, concluímos num papo super-cabeça, fala dos encontros em momentos distintos da vida de cada uma das partes. O encontro acontece, é intenso, é real... mas eles estão "em pistas opostas". Pra um, fica o vazio... pro outro, fica a alegria do encontro breve. Quem pode julgar? "A engrenagem do amor pode ser traiçoeira..."
domingo, 21 de novembro de 2010
Vírgulas & Lacunas
Porque quando fecho os olhos, é você quem vejo; aos lados, em cima, embaixo, por fora e por dentro de mim. Dilacerando felicidades de mentira, desconstruindo o que era em parte, abrindo todas as janelas para um mundo deserto de nós dois. É você quem sorri, morde o lábio, fala grosso, abre potes, inventa histórias, me tira do sério, faz ares de palhaço, pinta segredos, ilumina o corredor onde todos os túneis são começos de qualquer coisa de feliz, de leve, de azul, de puro e de meu.
Não, não me fale em medo, paciência, tempo que vai chegar. Não volte dois espaços, não negue, apareça. Sou vírgulas, você é lacunas. “Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?” É agora que quero dividir maçãs, achar o fim do arco-íris, pisar sobre estrelas e acordar serena. É para já que preciso contar as descobertas, alisar seu peito, preparar uma massa e cantar as velhas canções. Não posso esperar. Tenho a mesa posta, toalhas brancas, ombros moles e uma alma que só saber viver presentes. Sem esperas, sem amarras, sem receios, sem cobertas, sem idéias, sem voz, sem sentido. Com uma única certeza.
É preciso que você venha. É preciso que você venha nesse exato instante. Agora que não há conceitos e os nomes ainda são desprezíveis. Venha e escreva uma longa e cafona novela mexicana, com laquê nas expressões. Rime prazer com agonia, grafite paredes com os clichês dos amantes, acorde dentro de mim, lamba pernas com os seus cabelos lisos e reais. É tudo um vazio cheio de portas, com caminhos confusos e simples que levam ao único lugar possível a quem ousa chamar de amor o que não deveria ter nome: o desconhecido. Seja forte. Porque é preciso coragem para se arriscar num futuro incerto, cuja estrada embriaga até mesmo quem tem passos firmes e saber fazer o quatro. Esqueça os on-the-rocks. Seja cowboy, macho, gente, animal, mistério, doçura, pegação. Abandone os antes. Meu nome é já e nossos pés paralelos se tocam no finito. Chame do que quiser. Mas venha.
Preciso dizer-lhe o que você talvez ainda não saiba: existem lobisomens que comem flores. Você sabia que existem lobisomens que comem flores? Você sabia disso, meubem? Daqui quase posso vê-lo, no meio de um grande corredor colorido. Buganvílias, rosas, cravos, azaléias, orquídeas, gérberas, gerânios. Não sei suas preferidas, mas percebo uma sutileza no ar. Médico e monstro, dor e riso, o impossível e o real. Opostos quase palpáveis, fechando metades, descobrindo o mundo, abrindo clareiras no matagal das emoções. Você sabia que o impossível mora no nosso quintal? Você sabia que os galos cantam, todos os dias, para que a coragem desperte e Deus renove sua misericórida sobre todos os que pecam. Qual é seu maior pecado, meubem?
Hoje sou luxúria. Espero mãos pesadas, ópio na veia, sol de giz riscado no chão. Quero dividir meus erros, arranhar minha loucura, arrastar cabelos aos seus pés. Não cale. Entregue, apele. Posso descobrir mazelas escondidas e transformar seu corpo em juízo final. Marque o x e verá uma fila inesgotável de possibilidades adormecidas estendidas no seu varal. Seja. Porque estamos tão perto e tão longe e claros e cheios e inertes e ofegantes. Sou o chá, o veneno, a cura, a espera, a certeza, o presente, a solução. Reconheço enganos. E o meu medo é do seu medo de ter medo. Porque não quero amizade, paixão, carinho, admiração, respeito, ternura, tesão. Quero o que é e não tem muro. Escolhi o amor da prateleira e aprendi a só entender o sim. Se o seu modo é não, vá embora. Não olhe para trás. Renego estátuas de sal e abomino divisões. Se é para pular, que seja já. Porque hoje é hoje; e amanhã, amanhã ninguém sabe.
Pitadas de Caio F. - Parte I
"E essa falta cresce à cada dia, de forma avassaladora, quando enfim penso que estou me acostumando, que estou te esquecendo, você ressurge de forma inesperada ocupando todos os espaços, transbordando de dentro de mim... e é nessa inconstante loucura que vivo sem te ter."
"Quando você sente saudade demais de uma pessoa, então começa a vê-la nas outras, em todos os lugares, de costas, por um jeito de andar, de sorrir ou virar a cabeça de lado."
"Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você (...). Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis."
"A gente sempre acha que é especial na vida de alguém, mas o que te garante que você não está somente servindo pra tapar buracos?"
"Ai. Saudade é uma coisa azul e amarga com carne por fora e espinho por dentro."
"Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos - emoções."
"Na minha memória - tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonito."
"Cuidado com as ilusões mocinha, profundas e enganosas feito o mar."
"Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida."
"Como pode? Duas pessoas tão diferentes se amarem a ponto de não conseguirem desviar os pensamentos um do outro? Certo dia me perguntaram: Porque você se apaixonou? Eu respondi: Não sei. E talvez continue não sabendo. Eu simplesmente amo, acordo e vou dormir com ele nos meus pensamentos."
"Quando se deseja realmente dizer alguma coisa, as palavras são inúteis. Remexo o cérebro e elas vêm, não raras, mas toneladas. Deixam sempre um gosto de poeira na boca - a poeira do que se tentava expressar, e elas dissolveram."
"Que te dizer? Que te amo, que te esperarei um dia numa rodoviária, num aeroporto, que te acredito, que consegues mexer dentro-dentro de mim? É tão pouco. Não te preocupa. O que acontece é sempre natural - se a gente tiver que se encontrar, aqui ou na China, a gente se encontra."
"Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), até aproveito e não faço tanta besteira. Mas acho que amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome no listão dos aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é."
"Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar."
"Seria isso, então? Você só consegue dar quando não é solicitado, e quando pedem algo você foge em desespero. Como se tivesse medo de ficar mais pobre, medo de que se alcance seu centro e nesse centro exista alguma coisa que você não quer mostrar nem dar ou dividir."
"Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer? Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente."
"Não me venhas com Densas Complexidades Psicológicas. Artimanhas, embustezinhos corriqueiros. Portas falsas, coração. Tudo isso me nauseia como a décima dose de um licor de anis."
"Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?"
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Assalto?
Amar torto não significava, na sua cabeça também torta, que aquele amor não fosse também bonito. Era apenas a sua maneira de amar, que, assim como ela, era pouco convencional. Difícil de entender. Mais ainda de explicar. Tentou traduzir:
É intenso. Se expressa em pequenos gestos. Quase nunca em palavras. Ele é péssimo com as palavras. Aliás, não é. Ele é bom com as palavras, desde que elas não saiam da sua cabeça. Na sua cabeça ele é delicadamente decifrado em vocábulos doces, sutis, delicados e intensos. Mas só são assim lá. Fora dela quase sempre são uma verdadeira catástrofe.
Mas ele também sabe ser bonito. Daquela "boniteza" das coisas pequeninas e singelas como sorriso de criança. Como a primeira palavra dita, que quase nunca é a esperada. Como olhar pela janela e ver o céu alaranjado. Como tomar chuva na primavera voltando pra casa, que primeiro aborrece... mas quando você se entrega, é como se o peso das coisas se esvaisse com a água impura e a gente voltasse a ser aquela criança desprovida de angústias. Como tomar sorvete de tapioca olhando o mar sujo da Ribeira. Como molhar os pés na água fria do mar, que primeiro assusta, congela... mas depois lhe refresca a alma.
É como ser assaltado. É como ser assaltado. Repetia involuntariamente. Depois de ter passado horas tentando traduzir sua forma de amar, ela finalmente conseguiu traduzí-la em poucas palavras. É como ser assaltado. Em sua lógica, também torta, teorizou: primeiro o susto, depois o medo, a tentativa de reagir, em seguida a entrega de tudo que tens de mais precioso, o êxtase por sair ileso quando o outro tem compaixão ( e não é sempre), e por fim... a sensação de que está faltando alguma coisa. Concluída sua teoria, se perguntou: quem em sã consciência iria andar pela vida querendo ser assaltado? Não ousou responder. Apenas sorriu.