domingo, 28 de novembro de 2010

Tatuagem

Para ler ouvindo Elis Regina cantando "Tatuagem" de Chico Buarque.



Partiu. Fez questão de nada esquecer, pra não lembrar. Não olhou para trás. Não sorriu. Crispou o cenho e andou a passos firmes. Fechou a porta, trancou por fora. Jogou a chave embaixo do tapete, para que "quem sabe um dia" alguém encontre. No caminho foi deletando da memória as lembranças amargas e as doces também. O doce e o amargo são feitos da mesma matéria, pensou. Não deixou bilhete, nem recado com batom no espelho grande do quarto. Deixou apenas duas mãos tatuadas com o suor e a lascívia do sexo intenso na cabeceira da cama. Ali proferiu sua sentença. Ele partiu e ela jamais o esqueceria em noites de calor ou frio. Ao chegar em casa ela nada encontrou, a não ser as mãos, ali... imóveis, tatuadas. Única lembrança de um tempo bem vivido, a seu modo. Não procurou nada além. Como um fugitivo, ele não deixaria rastros. Não queria ser encontrado. As mãos na parede era seu código de vida e luxúria. Não lamentou. Não chorou. Não, não, não. Lembrou que só de nãos vivera aquilo. Não querer. Não poder. Não sonhar. Não viver. Não. Esqueceu-se dos sins. Não, não os esqueceu. Apenas não conseguia dizê-los. O “sim, eu quero” ficou preso em algum lugar dentro de si. Pousou suas mãos sobre o desenho disforme na cabeceira da sua cama e sentiu pela última vez a vibração daquele ser que por algum tempo lhe emprestou asas. Sorriu de contentamento e seu corpo estremeceu como no compasso das asas de um beija-flor. Foi até a cozinha e se armou. Mas água e sabão não apagariam a lembrança daquelas mãos que manchavam a parede. Lembrou que água e sabão jamais limpariam teu corpo e tua alma das marcas que aquelas mãos haviam deixado. Como cicatrizes, elas ali permaneceriam... até que o tempo e as mudanças que ele traz, na casa ou no corpo, a encobrissem ou disfarçassem. Mas sabia que ainda assim elas estariam lá. Para lembrar a partida. Para lembrar os nãos. Para lembrar os sins, que disse sem dizer. Para lembrar as asas que um dia tivera. Para lembrar que a chave estava embaixo do tapete. Do lado de fora. Ela ali, do lado de dentro, apenas gritaria para quem batesse de novo à sua porta: - As chaves estão aí, pode entrar.

4 comentários:

  1. Me arrombou inteiroooooooooooooooooooo!!!!

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  2. Amiga...!!!!!! Sem palavras! Quando crescer quero escrever igual a você. Maravilhoso! Já eu, tenho que aprender a dizer não, pOrque, se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem SIM! RSRSRS

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