Assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças atrás, dois rapazes de ar indefinido à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite. O ar ressecado estrangula os movimentos, depositado como poeira sobre as faces desfeitas de feições, expressões escorrendo em suor ao calor inesperado sobrevindo depois da chuva. Um rato caminha sobre uma das vigas de sustentação. Ele olha o rato, e o rato não o vê. Olha o rato, mas as outras pessoas não sabem que seu olhar olha o rato. Sozinho naquele bar, naquela rua, em todosos bares em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro -sozinho: ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas.
- Você prefere lasanha ou ravióli?
- O meu dia só existe porque você existe dentro dele.
- Garçom, por favor .
- Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.
- Eu quero batatinha frita.
- Hoje existir me dói feito uma bofetada.
- Sem cebola, por favor.
Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia - uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. Mas o rato está em cima; ele estava em baixo, o sexo enrijecido, a mulher se movimentando sobre ele. Uma lassidão de coisa cujo destino é possuir, mas submetida à posse, quem sabe ampliada no escuro. Expandia-se dentro de si num movimento de revolta e nojo. Muito próximo do seu, o rosto da mulher aberto numa quase careta de gozo, os dentes manchados de cigarro espiando por entre os beiços cobertos de batom que as gotas de suor faziam escorrer. Apertou-a contra si, as mãos comprimidas na bunda áspera. O sexo explodiu numa chuva densa, enquanto olhava estupidamente para o fio de luz coado pela janela.
- Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.
- Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.
- Infelizmente o camarão acabou.
- Estou completamente cheio.
- Bem molezinha, com bastante sal.
- Mas este prato está sujo, que absurdo!!!
- Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos – você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora, neste bar, sozinho, longe de você e de mim.
O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feitos todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. Aqui e agora, pedindo mais uma cerveja ao garçom vestido de branco, bigodes retorcidos para baixo. Cercou-o devagar: um cuidadoso exame de comprador investigando a mercadoria, a medir de cima abaixo, da cabeça aos pés, a largura do tórax, a grossura das coxas, as mãos de dedos grossos nas juntas, os olhos escondidos debaixo das sobrancelhas, a barba forte azulando o rosto -como se conseguisse ir além da calça azul e da camisa branca limitando a carne. O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.
- Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.
- E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, compreende?
- Temos peixe. Filé de peixe, serve?
- De repente parece que todo mundo vai começar a morder a gente.
- Feijão não, eu odeio feijão.
- Uma merda, tudo. Uma grande merda.
Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. Ela sorriu de lado, a língua metida na falha entre os dois dentes. Concordou. Meteu a mão no bolso, procurando a carteira, e sentou o quase toque nos seus sapatos. Cerrou os dentes, o sexo latejava, estendeu a mão e tocou. Imóvel -o homem. O indecifrável dos olhos, do vinco marcando a boca, espreitando o, tenso. Eu pago,disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
- Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?
- Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.
- Temos sopas, também. Madame é quem sabe.
- Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.
- Arroz? Mas eu só queria batatinha.
- E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?
- Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.
Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. Aquela inconsciência de si mesmo, a ausência de indagações, de marcas - a isenção o deixava paralisado, como uma ferocidade inesperada: um animal, o homem nu, estendido sobre a cama. Tocava o sexo, e o sexo vibrava. A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. Alinhou um a um os farelos na esquina, formando um nome com o líquido da urina. A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou acorrer para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.
- Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.
- Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
- Quem sabe uma feijoada?
- Daqui a pouco vai começar a chover de novo.
- Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.
- Quer fazer o favor de me alcançar o copo?
- Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.
Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto - o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.
- Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.
- E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.
- Não? Quem sabe então um... um... um...
- Não adianta insistir. Agora eu vou.
- De creme, não. Quero de morango.
- E essa coca-cola que não vem?
- Sei lá, vou dormir que é melhor.
Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro -o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de sua próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.
- Você prefere lasanha ou ravióli?
- O meu dia só existe porque você existe dentro dele.
- Garçom, por favor .
- Vou-me embora, não suporto mais este bar, este calor, esta mesa. Não suporto mais você.
- Eu quero batatinha frita.
- Hoje existir me dói feito uma bofetada.
- Sem cebola, por favor.
Quando partiu, levava as mãos no bolso, a cabeça erguida. Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto, ficado em meio para trás. Não olhava, pois, e, pois não ficava. Completo, partiu. Não vê, mas pode sentir o toque áspero da pele recoberta de pêlos em suas mãos que seguram o garfo e a faca, e o toque é quase uma carícia - uma nauseante carícia de bicho à procura de qualquer coisa. Mas o rato está em cima; ele estava em baixo, o sexo enrijecido, a mulher se movimentando sobre ele. Uma lassidão de coisa cujo destino é possuir, mas submetida à posse, quem sabe ampliada no escuro. Expandia-se dentro de si num movimento de revolta e nojo. Muito próximo do seu, o rosto da mulher aberto numa quase careta de gozo, os dentes manchados de cigarro espiando por entre os beiços cobertos de batom que as gotas de suor faziam escorrer. Apertou-a contra si, as mãos comprimidas na bunda áspera. O sexo explodiu numa chuva densa, enquanto olhava estupidamente para o fio de luz coado pela janela.
- Não posso comer massa, meu bem, engordo horrores.
- Porque se você não vem é como se o tempo fosse passado em branco, como se as coisas não chegassem a se cumprir porque você não soube delas.
- Infelizmente o camarão acabou.
- Estou completamente cheio.
- Bem molezinha, com bastante sal.
- Mas este prato está sujo, que absurdo!!!
- Tudo dói, e eu já nem sei mais para onde ir nem o que fazer, se ao menos – você me amasse um pouco, não estaria aqui e agora, neste bar, sozinho, longe de você e de mim.
O rato, agora, em passos hesitantes, a cauda enroscando-se em madeiras. Esfarela devagar um pedaço de pão, o miolo escorre por entre os dedos, feito água, feito vento, feitos todas as coisas que passam e não marcam em nada, em nenhum recanto do corpo físico além de memória. Aqui e agora, pedindo mais uma cerveja ao garçom vestido de branco, bigodes retorcidos para baixo. Cercou-o devagar: um cuidadoso exame de comprador investigando a mercadoria, a medir de cima abaixo, da cabeça aos pés, a largura do tórax, a grossura das coxas, as mãos de dedos grossos nas juntas, os olhos escondidos debaixo das sobrancelhas, a barba forte azulando o rosto -como se conseguisse ir além da calça azul e da camisa branca limitando a carne. O sexo: ponto de chama entre as pernas. Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco.
- Prefiro carne, ao menos não engorda tanto.
- E se você vem, fica tudo maior, mais amplo, sei lá mas é como se eu existisse dum jeito mais completo, compreende?
- Temos peixe. Filé de peixe, serve?
- De repente parece que todo mundo vai começar a morder a gente.
- Feijão não, eu odeio feijão.
- Uma merda, tudo. Uma grande merda.
Súbito escorrega para uma região desconhecida, onde tudo se dilui em sombra, em silêncio. Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. A mulher o encarou ofendida: se você gosta de homem, o problema é seu, meu filho, não tenho nada com isso. Insistiu. O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: "O povo passa fome". Jamais olhava para trás, jamais: o que estava feito, estava feito, estava consumado, estava para sempre imutável, inamoldável, fechado em si mesmo, estanque: o tempo. Ela sorriu de lado, a língua metida na falha entre os dois dentes. Concordou. Meteu a mão no bolso, procurando a carteira, e sentou o quase toque nos seus sapatos. Cerrou os dentes, o sexo latejava, estendeu a mão e tocou. Imóvel -o homem. O indecifrável dos olhos, do vinco marcando a boca, espreitando o, tenso. Eu pago,disse. Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
- Tudo bem, um bife, mas bem pequenininho, bem passado e sem molho, hein?
- Ninguém toma de ninguém esse tipo de coisa, ninguém.
- Temos sopas, também. Madame é quem sabe.
- Me deixa ir embora. Eu não quero mais te ver. Nunca mais.
- Arroz? Mas eu só queria batatinha.
- E a faca? Será que é preciso comer com as mãos?
- Se ao menos dessa revolta, dessa angústia, saísse alguma coisa que prestasse.
Qualquer coisa: eu teria ao menos algo em que me segurar, qualquer coisa. O extremo da revolta seria a coisa feita, pronta para que segurassem nela. Eram vermelhos? Ou seriam azuis? Nunca vira os olhos de um rato bem de perto. Só a cauda, estendendo-se de elo em elo, até o final pontudo, como uma serpente. Não suportaria encarar um animal, qualquer que fosse. Aquela inconsciência de si mesmo, a ausência de indagações, de marcas - a isenção o deixava paralisado, como uma ferocidade inesperada: um animal, o homem nu, estendido sobre a cama. Tocava o sexo, e o sexo vibrava. A cama vibrava. A noite vibrava. O mundo vibrava. Alinhou um a um os farelos na esquina, formando um nome com o líquido da urina. A mão machucada de sustentar o grito do cartaz, os pés sob a revolta, os ombros doídos embaixo da contestação. Foi de repente que começou acorrer para longe daquilo, esmagado pela exigência, pelo espanto de estar pedindo alguma coisa que nem para si era. Pedir exigia uma participação íntima que ele não tinha, e seus gritos ressoariam falsos por todas as esquinas, seus ombros curvariam ao peso acumulado, a cabeça baixa, rabo entre as pernas. O susto do rato com a bolinha de pão jogada sobre a cabeça.
- Imagine, ele falou que tinha achado o chapéu detestável.
- Só eu sei que cheguei à humildade máxima que um ser humano pode atingir: confessar a outro ser humano que precisa dele para existir.
- Quem sabe uma feijoada?
- Daqui a pouco vai começar a chover de novo.
- Tá bem, mas só se vier um sorvete depois.
- Quer fazer o favor de me alcançar o copo?
- Mas não sai nada. Nada. Nem uma lágrima.
Aproxima-se. Os olhos agrandaram na procura consumada em encontro, as patas avançaram para o objeto - o cinzento arrastando-se sobre o amarelo dos tapetes.
- Inveja, pura inveja, conheço demais essa gente.
- E no momento em que se confessa a precisão, perde-se tudo, eu sei.
- Não? Quem sabe então um... um... um...
- Não adianta insistir. Agora eu vou.
- De creme, não. Quero de morango.
- E essa coca-cola que não vem?
- Sei lá, vou dormir que é melhor.
Agrandava-se. Senhora dona Cândida, coberta de ouro e prata, descubra o seu rosto, quero ver a sua graça. Descobria-se. Afastava o ouro, a prata, as mãos que escondiam o rosto e dentro -o que havia? Contém-se e começa a contar-se baixinho: Era uma vez: assim: do lado direito, um casal de velhos; do lado esquerdo, uma mulher com duas crianças; atrás, dois rapazes de ar indefinido; à frente, a toalha vermelha da mesa ampliando-se em perspectiva até a janela aberta para a noite". E o rato. Quis gritar, mas era tão tarde, era muito tarde, era sempre tarde. Viu o garçom arrumando os pratos sobre a mesa, a fumaça elevando-se da comida quente. Mas a vidraça ainda não refletia a cor exata dos olhos. Baixou a cabeça para o prato, apoiado nas quatro patas cinzentas, o focinho fino, as pessoas esfarelando pães e jogando-lhe pedaços, espantou-se da delicadeza de sua próprias garras, da leveza de seu próprio corpo, agora apertam sua cauda entre os pés, e ele foge, tenta fugir, mas alguém sopra em seus ouvidos algo parecido com uma canção de ninar. Ou uma canção de guerra, de ódio, de nojo, de sangue, uma cantiga de roda, ou simplesmente um grito estridente, agudo, trêmulo, incompreensível. Um grito humano.
Caio F.
In: O Inventário do Ir-remediável.
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