O tilintar da colher no copo de alumínio não sai da cabeça. É assim que se faz a garapa - mistura de água com acúcar -, que durante alguns dias é a única fonte de alimentação diária das famílias cearenses retratadas no filme, que leva o mesmo nome.
O diretor José Padilha, famoso pelos filmes Tropa de Elite e Ônibus 174, volta mais uma vez a fazer crítica social. O tema é a fome que aflige milhares de brasileiros todos os dias e ele se inspirou em Vidas Secas, obra clássica de Graciliano Ramos. O filme foi rodado em preto e branco e sem trilha sonora. O assunto não é novidade, mas há algum tempo deixou de ser pauta principal de discussão no Brasil do Fome Zero.
São 110 minutos de "tortura psicológica". Provoca catarse. Vergonha de comer. Vergonha de sentir outras fomes.
Para além da questão da fome, o filme alude a outras discussões: invisibilidade, planejamento familiar, matriarcalismo, abrangência de programas sociais governamentais, responsabilidade social, responsabilidades individuais. Questões subjacentes que compõem o tecido social e revelam as fragilidades de uma sociedade essencialmente desigual.
O documentário não se revelou primoroso, ao meu ver. Pecou pelo execesso, em alguns casos. Pecou pela falta, em outros. De jeito nenhum isso retira o mérito da película, mas de alguma forma compromete o seu papel social. Em alguns momentos me senti assistindo um reality show "macabro". Voyeurismo social, como disse o crítico antes do filme ser exibido. Talvez esta tenha sido a intenção do diretor: chocar pelo realismo. "Mas tudo demais é sobra, e o que sobra aborrece", já dizia minha avó. Em um determinado momento o filme não evolui mais. Torna-se circular. Não desafia mais.
A experiência me fez recordar dos meses passados em Angola. Puro déjà vu. Lembrei do choro contido, das ânsias de vômito, das noites insone. Lembrei do quanto meus problemas pessoais daquele momento me distanciaram, de algum modo, daquela realidade que me esbofeteava diariamente. Lembrei da vergonha que sentia por sofrer por algo tão pequeno diante da complexidade dos dilemas daquelas pessoas com as quais tive contato durante aqueles dias. Tive consciência de que somos assim: egoístas e pequenos. Mas vivemos em outro contexto, uma outra realidade que demanda outras coisas. Isso faz toda a diferença.
Nossas fomes são outras, e não podemos nos ressentir disso. Fome é ausência, é falta, é necessidade... e ela sempre nos acompanhará. Mas, a partir de agora, quando sentir qualquer fome... aprenda a dar a devida dimensão para ela. Não a superestime... não a subestime. Apenas dê a devida dimensão para ela.
P.S.: O documentário Garapara estréia dia 29 de maio. Ontem e hoje ele foi exibido pelo Canal Brasil.
Milagres / Miséria
ResponderExcluirCazuza / Arnaldo Antunes / Roberto Frejat / Denise Barroso / Paulo Miklos
Nossas armas estão na rua
É um milagre
Elas não matam ninguém
A fome está em toda parte
Mas a gente come
Levando a vida na arte
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Índio mulato preto branco
Miséria é miséria em qualquer canto
Todos sabem usar os dentes
Riquezas são diferentes
Ninguém sabe falar esperanto
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Miséria é miséria em qualquer canto
A morte não causa mais espanto
O sol não causa mais espanto
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Cores raças castas crenças
Riquezas são diferentes
As crianças brincam
Com a violência
Nesse cinema sem tela
Que passa na cidade
Que tempo mais vagabundo
Esse agora
Que escolheram pra gente viver?
O pior é se acostumar com a fome! A ausência sempre presente?? Não!!
ResponderExcluirO alimento é necessário pra essas pessoas, que seja 50 reais pra comer em uma semana, que é um absurdo, mas que seja. Adultos, cachorros, gatinhos, idosos passando fome, mas o mais triste são essas crianças lindas que já nascem no meio dessa ausência de alimento!