Acordou e não quis levantar-se. Ficou ali, olhando o teto branco. Sua cabeça doía tremendamente. Havia se excedido um pouco no dia anterior, porque em alguns momentos o álcool era seu refúgio. Bebeu, se divertiu... mas não parava de pensar na conversa há muito adiada e que sabia precisar acontecer. Fazia dias esta idéia não saía da sua cabeça e ele relutava em atender aos apelos dos sonhos que o atormentavam nas últimas noites. Sonhos ou pesadelos... ficou sem saber.
Pensou um pouco, tomou coragem e pegou o telefone. Não lembrava o número, mas lembrou que a memória atua no sentido de nos proteger. Ligou para uma amiga, pegou o número e finalmente ligou. Mãos trêmulas, voz vacilante disse: Alô! A voz do outro lado da linha fingiu não reconhecer. Talvez não tenha fingido também, pelo mesmo motivo que o fez não lembrar o número do telefone, pensou. A conversa foi breve, marcaram enfim o tão evitado encontro para dali a poucas horas.
Ele tomou banho como todos os dias, se vestiu como todos os dias, mas não saiu como em todos os dias. Na sua cabeça toda a história dos últimos anos voltou como um filme inacabado. Ele estava a caminho do set para a filmar a última cena, o último ato de um espetáculo que não teria o final feliz das produções hollywoodianas. Teria o final feliz daqueles que continuam seguindo seu caminho, apesar de.
Pegou o carro, cumprimentou o manobrista de maneira simpática e o desejou um bom domingo. Lembrou que era domingo e pensou: domingo não é um bom dia para se tomar atitudes grandiloquentes. Cantarolou os versos de Bethânia: "domingo eu não choro, domingo eu não sofro, domingo eu sou de paz e alegria". Reviu seus conceitos. Acendeu seu cigarro e rumou para o lugar que por algum tempo o acolheu como casa. Fuma nervosamente e, enquanto dirige, observa o caminho que há muito tempo não fazia. Tomou consciência de que tudo muda mesmo, em pouco tempo... até a paisagem das grandes cidades. Lembrou de si, da sua infância, das suas escolhas, do caminho que o levara até ali. Sorriu de contentamento.
Fumou, dirigiu e cantarolou durante todo o percurso. Não ensaiou um texto, não definiu um script. Gostava de improvisar, de se deixar levar pelo momento, ou pelo vento das circunstâncias, brincava. Mas isso não sempre, porque levava a sério a coisa de "tomar o seu destino pelas mãos" e o fazia muito bem.
Chegando ao seu destino ligou para avisar. Não queria ir até o apartamento. Preferia guardar na memória a imagem antiga do local onde fora feliz por um bom tempo e de onde saiu da última vez, ainda feliz... sem saber que ali não mais voltaria. Ficou aguardandona rua, ouvindo música e apreciando a tarde de sol e céu azul. Aproveitou para encher os pulmões de ar... que começava a rarear. Sentiu medo. Fumou mais uma vez.
Aguardou alguns minutos, até que ele apareceu com malas nas mãos. Trazia o pouco que sobrou da vida em comum. Foi ao seu encontro - não se abraçaram ou sorriram - pegou uma das malas e imediatamente foi conferí-las. Não era para ver se faltava alguma coisa - pois nem lembrava inclusive daquelas -, mas para evitar que levasse o que não era seu. Constatou que era só aquilo mesmo que tinha sobrado: umas peças de roupa e alguns papéis que ainda ocupavam a vida e o espaço do outro. Retirou tudo o que lhe pertencia das malas e as devolveu imediatamente. Corrigiu alguns pequenos equívocos, comuns, quando se confunde o que é seu com o que pertence ao outro na vida compartilhada.
Entraram no carro e andaram apenas um quarteirão, o que causou estranhamento ao outro. Sairam do carro e sentaram-se no banco da praça, quase abandonada. Um de frente pro outro. Olharam-se furtivamente, evitando contato. O outro tentou engatar uma conversa sobre amenidades, comentou sobre objetos que trazia, provavelmente na tentativa de dar leveza ao momento. Impossível. A tensão era latente e ele não estava a fim de conversar sobre as coisas, sobre os amigos, sobre a vida. Sabia muito bem o que estava a fazer ali, e não perderia seu tempo com digressões inúteis. O outro não era mais alguém com quem quisesse compartilhar o que quer que fosse.
De óculos escuros, olhava para aquela pessoa à sua frente e não via sombra de quem amou um dia. Tirou os óculos para ver se não era problema com as lentes. Era estranho. Parecia estar diante de alguém que encontrava pela primeira vez. Um estranho. Sentiu um tremor percorrer seu corpo. Acendeu um cigarro e olhou fixamente o outro esperando que se pronunciasse. A conversa foi rápida, sem discussão, sem troca de ofensas, mas com alguns cigarros, que tremiam na mão pálida. Cada um expôs seu ponto de vista sobre os fatos e seu encadeamento. Não houve cobranças. Talvez uma aqui ou outra ali, afinal eram um ex-casal e ex-casais sempre têm alguma conta para cobrar. Ele ouviu tudo: as desculpas, as verdades alteradas, as omissões. Não contou o que sabia. Preferiu manter consigo tudo que havia descoberto, daquelas coisas que os amigos só contam depois de terminada a relação. Não fazia mais sentido, não tinha mais importância. Talvez por certa compaixão quisesse que o outro acreditasse que fez tudo certo... à sua maneira, mas certo. Era a memória mais uma vez fazendo sua parte: "ele deve ter esquecido e não sou eu quem vai lembrar", pensou. Era o que tinha para dar naquele momento: certa tranquilidade, certa paz. Todos precisam. Outro cigarro.
Ele fez questão de dizer que adiou tanto tempo aquele encontro para que tivesse a certeza de que seria assim, sem a contaminação da raiva, das mágoas, da tristeza pelo fim e pela maneira como os laços foram desfeitos. Estava ali de alma limpa, sem ressentimentos mas, com uma certeza: a de que não mais o queria em sua vida, mesmo como amigo. Não fazia mais sentido. Laço desfeito, nó desatado.
Uma das suas crenças mais fortes era que amizade e respeito são inseparáveis. Uma vez acabado o respeito, com ele se vai a amizade. Lembrou de uma frase de um dos seus escritores prediletos: "Amor não resiste a tudo, não. Amor é jardim. Amor enche de erva daninha. Amizade também, todas as formas de amor." Enquanto estavam juntos, ele fazia questão de lembrar ao outro que antes de qualquer coisa eram amigos. E que gostaria que, se um dia o casamento acabasse, eles assim continuassem. Fez de tudo para que isso acontecesse, mas o outro não quis... fez sua escolha. Agora também ele estava fazendo a sua: manter-se firme no propósito de não refazer este laço, afinal escolhe seus amigos a dedo e naquele momento não via aquela pessoa como um deles. Pelas suas atitudes, pelas suas escolhas, não era alguém com quem quisesse compartilhar a vida.
Assim a conversa acabou. Certamente o outro ficou surpreso, pois estava acostumado a ser perdoado... e talvez por isso não pensasse duas vezes antes de magoar ou ferir. Ele estava certo de que fora ali apenas para fechar o ciclo, encerrar as coisas. O "talvez" nunca lhe soou bem. E assim o fez, sabendo também que no fundo ajudara o outro. Lhe deu a redenção, a libertação - se é que algo ainda o prendia - ao saber que estava tudo superado. O tempo fechou a ferida, ficou apenas a "cicatriz no plexo solar" - que com o tempo diminui e chega a sumir. Lhe deu também a possibilidade de aprender com o erro: "quem não aprende pelo amor, aprende pela dor", lembrou do ditado da infância. Ele amou demais e não conseguiu pelo o amor... não conseguiu o quê? Não sabia... Se sentiu arrogante e pretensioso. Ninguém ensina ninguém nestes assuntos e ele descobriu isso da pior forma possível. Pior... melhor? Isso existe? Duvidou. "Tudo é uma questão de ponto de vista", teve tempo de filosofar.
Despediram-se. Mais uma vez sem abraço, sem sorrisos e... sem lágrimas. Cada um seguiu seu caminho. Ele entrou no carro, acendeu mais um cigarro e lembrou de algo que sempre dizia ao outro: "teu olhar melhora o meu". Sorriu de contentamento pela segunda vez naquele domingo de sol, por sentir que não lhe restou nenhuma amargura. Não quis olhar para trás. Voltou para casa pelo mesmo caminho, mais uma vez observando como as coisas mudam, até a paisagem das grandes cidades.
Me desculpe, mas eu só posso gritar "Que porra é essa?!!!" Que texto maravlhoso é esse? Completo, perfeito. Ele sabe que ele melhora muito as pessoas?
ResponderExcluirEnfim, ponto final.
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