A matéria sobre a tramitação de um projeto que prevê a prisão e até pena de morte para homossexuais em Uganda chocou o Brasil. Tomei conhecimento da mesma através de comentários de pessoas espantadas com o absurdo e com a falta de "civilidade" que ainda impera nos países africanos. Fui conferir para compreender exatamente do que falavam.
A questão da homossexualidade ainda é tabu na África, assim como no Brasil e em muitos outros países do mundo. Mas numa dimensão maior, é claro... reconheço. O atraso educacional do continente em geral, e deste país em particular - que só se tonou independente em 1962, ou seja, há menos de 60 anos, e desde então vive em permanentes conflitos civis, motivados por questões políticas e econômicas -, creio eu, ser o grande responsável pela sua falta de "civilidade". A história de exploração, negação de direitos e alijamento dos processos educacionais vivida por aquele povo explica a maneira como encaram questões que nós, "civilizados", julgamos já ter dado conta. Explica, mas não justifica... é importante salientar.
Fiquei horrorizada com a situação, como os demais. Não só horrizada, como revoltada. Mas não parei por aí.
À medida que a matéria era exibida me pus a refletir sobre o que ouvia. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato do repórter, civilizado, repetir insistentemente o termo "homossexualismo", que já foi abolido e não é novidade. A linguagem é expressão do pensamento. Ao usar o termo homossexualismo, ao invés de homossexualidade, o repórter reforçava a idéia que ainda impera em nossa sociedade "civilizada" da condição de "doente" em relação aos homossexuais. Assim como o povo de Uganda, ainda perdura em nós a noção de anormalidade no que tange à homossexualidade. É Patologia. Desvio.
Para a além da evidência expressa no vocabulário de quem conduzia a matéria, fiquei me perguntando: quem somos nós para julgar o ugandês? Até que ponto nos distanciamos dele?
Tento responder:
1. Somos o país civilizado onde um homossexual é assassinado a cada dois dias, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB). É pena de morte, assim como lá. Fere os princípios dos direitos humanos do mesmo jeito, mas sem o aval do Estado. Até que ponto?
2. Somos o país civilizado onde o homossexual não tem o direito à união civil.
3. Somos o país civilizado onde ainda existem profissionais e religiosos que dizem "curar" a homossexualidade.
4. Somos o país civilizado onde jovens homossexuais ainda são expulsos de casa ao assumir sua orientação.
5. Somos o país civilizado onde muitos pais ainda afirmam preferir ter um filho ladrão do quê "viado" ou uma filha puta do quê lésbica, ou até mesmo preferem o filho morto a qualquer uma das duas coisas.
6. Somos o país civilizado que ainda não aprovou a adoção legal de crianças por casais homossexuais - salvo algumas exceções que ficam a mercê do bom senso de algum juiz - porque está em pauta a "má influência" que tal configuração familiar pode ter sobre a criança.
7. Somos o país civilizado em que milhares de homossexuais vivem "dentro do armário" por medo da discriminação, do linchamento público, da perda do afeto daqueles que lhes são caros. Não seria isso uma forma de "prisão perpétua"?
9. Somos o país civilizado em que alunos de uma das suas maiores instituições de ensino superior divulgam no jornal uma promoção que premiaria quem jogasse fezes em gays.
10. Somos o país civilizado em que casais gays são convidados a se retirar de determinados ambientes por agredirem os demais clientes com demonstrações de afeto.
11. Somos o país civilizado que premia com a cifra de R$ 1 milhão um cidadão que faz declarações de caráter homofóbico em rede nacional.
Poderia escrever uma lista interminável aqui. Desnecessário.
O que eu quero dizer com isso?
Grosso modo, que o que nos difere do povo de Uganda é a hipocrisia. O eufemismo. É a mania de dizer ter um comportamento politicamente correto, que nos garanta certo ar de civilidade. Discurso vazio que não se sustenta em nossos atos.
O Brasil é um país onde os homossexuais são tratados com igualdade de direitos tanto quanto os negros, os índios, as mulheres, os pobres e as pessoas com deficiência.
Minha avó dizia: "macaco fala dos outros e não olha pro rabo". Somos macacos, sem querer ofender nossos ancestrais. Avançamos sim, mas estamos muito aquém da superação e derrubada de tabus como a homossexualidade. Muitos ainda pagarão com a vida, como em Uganda... infelizmente.
Volto a afirmar que sob nenhuma hipótese considero a situação em Uganda justificável. Apenas considero que em ocasiões como esta vale o exercício da reflexão sobre o que deles existe em nós. Até que ponto eles realizam um desejo que os nossos valores morais "civilizados" não nos permitem mais? Até que ponto nossa revolta é legítima? Até quando faremos de conta que está tudo bem, está tudo certo ou que aqui não existe isso?
O que está havendo com a humanidade? Lembrei de Bauman. Preciso voltar a seus escritos.
Sem palavras para expressar onde suas palavras conseguiram alcançar com a clareza sobre o que já estamos cansados de discutir, mas desta vez explicitar que vivemos rodeado do rótulo de civilizados enquanto ainda pertencemos a uma grande barbárie.
ResponderExcluirAgora não foi mais insônia, foi embrulhar o estômago na hora do almoço. Tem sido perigoso visitar esta canto, mas é de extrema importância vir, ler, refletir contigo. Você traz a luz coisas obscuras que fingimos não ver, vc suspende o tapete da nossa sala de jantar.
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