O espetáculo "Odete traga meus mortos", de meu amigo Edu O. e Lucas Valentim parece ter reverberado na alma de todos que tiveram contato com ele-ela. Ninguém saiu ileso. Certamente houve quem tapasse os olhos e ouvidos, mas indubitavelmente os ecos de Odete ficarão ali dentro à espera do momento certo para ganhar os ventos e ressoar.
O impacto que Odete provoca nas pessoas vem justamente do fato de discutir um tema que inquieta a todos: a morte, a perda, a validade das coisas. É tudo uma coisa só. É coisa que agente é obrigado a conviver desde o momento em que nasce. É a única coisa que nós nascemos sabendo que vai acontecer. É a nossa única certeza inexorável.
Desde que Odete surgiu, e ela agora é como se fosse uma entidade materializada, tem me feito pensar. Penso na morte de todo dia. Nas pequenas e grandes perdas. No quão isso é tão corriqueiro e, contraditoriamente, assustador. Nestes "pensares" Odete também trouxe os meus mortos. Lembrei da minha querida avó, do meu querido Douglas, das minhas paixões da infância, das amizades indestrutíveis da adolescência, dos sonhos e planos da juventude, dos projetos profissionais, dos amores eternos, da inocência, dos quereres, das certezas, das verdades. Todos mortos ou agonizantes. Alguns ainda vivos por puro apego.
O modelo de Kübler-Ross, que define os cinco estágios da morte, para mim é ainda o que melhor explica os sentimentos envolvidos na perda. Qualquer perda. Apesar da teoria defender que as etapas podem não ocorrer na sequência inicialmente descrita - e que algumas pessoas não passam por todas elas -, eu ainda acredito que é assim mesmo que ela acontece com a maioria de nós.
Primeiro, a negação. Negamos até o limite máxino. Nos negamos a enxergar, a aceitar, a entender. Tapamos olhos e ouvidos. Fingimos, encenamos, insistimos em repetir que está tudo bem, que tudo continua no mesmo lugar. Enfim, negamos. Creio que esta é a etapa mais demorada, por conta do apego. O danado do apego que insistimos em ter com tudo que nos é caro... e algumas vezes com coisas que nem deveriam ser e que a gente só descobre depois do luto.
Depois vem a cólera. Nos revoltamos com o mundo, com o outro, com Deus, com o que estiver ao nosso alcance. Perguntamos "por que comigo?" Olhamos para fora e não para dentro. Buscamos sempre no externo, o que muitas vezes só encontramos dentro de nós. "O inferno são os outros", já dizia Sartre. Mas a intolerância às frustrações é algo que praticamente nasce com a gente. Tem gente que aprende a lidar bem com isso, mas tem gente que morre sem saber. E quando é assim, a gente responsabiliza o outro, até mesmo porque é mais fácil depositar a "culpa" em alguém que não seja eu. Esta etapa também é uma das mais difícies de se vencer, de ser ultrapassada. Há quem fique anos nela envenenando a alma... impossibilitando que qualquer coisa bonita possa nascer.
A terceira etapa é a barganha. Vamos negociar. Nos humilhamos, imploramos, oferecemos até o que não temos pra dar, o que não se pode dar. Fazemos promessas. Nesta hora entra Deus, entram os Orixás e todos os santos que existirem. Nesta hora deixamos tudo de lado: nossas crenças, nossos valores, nosso orgulho. O medo da perda, da morte das coisas é tão grande que vale qualquer sacrifício.
A penúltima etapa é a depressão. A tristeza nos consome, a dor é tanta que nos imobiliza. Lamentamos, choramos, recorremos a todos os amigos, nos isolamos... Toda a dor do mundo mora em nós. Ficamos sem chão, é como se o mundo desabasse em nossa cabeça. Tudo é ausência. Perdemos o sono, o apetite, o brilho. Viramos cinzas...
Por fim, chegamos à aceitação. Vivemos o luto da perda até sua última gota. Vamos ao fundo do poço e de lá ressurgimos de novo para a vida e para outras mortes. Quando aceitamos a perda - seja a perda da saúde, de um ente querido, do amor ou de um sonho -, nossa relação com o mundo e com nós mesmos muda. Nos fortalecemos e passamos para um estágio da vida em que tudo é possibilidade.
Como o ser humano é de uma complexidade ímpar, tem quem passe por todas as fases num curto período de tempo. Há quem leve anos. Uns, à medida que o tempo passa, vão aprendendo a lidar melhor com isso e já não sofrem tanto. Outros se embrenham num círculo vicioso e repetem insistentemente um padão comportamental nocivo, em que cada perda é como se fosse a primeira. Enfim... somos humanos e nunca iguais.
Voltando a Odete... não tive o privilégio de assistir ao espetáculo, mas ele-ela ficou em mim. Trouxe meus mortos. Ecoou e ressoou dentro de mim. Me impeliu à ação. Me fez enfrentar uma morte há muito vivida, mas ainda inacabada. Faltava alguma coisa... Enfrentei ela de frente: sem lágrimas, sem pesares, sem dor. Joguei a última pá de cal no caixão cerrado dentro da cova. Saí sorrindo de satisfação pela coragem. Alma alegre e feliz... tomando chá com bolachas. Foi libertador.
Odete trouxe meus mortos. E os teus, onde estão?
Ps.: "Odete, ouve o meu lamento" é uma canção de Vinícius Eliud e Herivelto Martins. A única versão que encontri foi este vídeo no Youtube na voz de João Gilberto, presente de Djean Felipe. Um achado.
Nossa.. estava de passagem no blog de Edu e vi o seu blog, me chamou logo pelo nome... adoro.
ResponderExcluirE este post, acabo de ler e não tenho como falar. As emoções estão ainda flutuando, Odete trouxe os mortos e as sensações fortes, e agora revivi outras tantas com sua poesia.
Um beijo!
Di