segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Choque de realidade I

Uma das experiências mais chocantes que vivi aqui em Angola ocorreu em uma pequena comunidade no muncípio de Ondjiva, Província do Kunene.
Estávamos a entrevistar um grupo de pais, na verdade mães, sobre a situação da escola e seus sonhos. Eram quatro, sendo que uma delas não falava português e o nosso diálogo era traduzido por uma outra participante.
A certa altura, um senhor com uniforme de polícia invade a sala e começa a esbravejar. Nós, sem entendermos muito bem o que estava se passando, nos apresentamos e tentamos explicar o que fazíamos ali. Ele não quis nos dar muita atenção e só gesticulava e balbuciava coisas ininteligíveis.
Quando conseguimos chamar sua atenção, ele se voltou para nós e, apontando duas mulheres que estavam na sala, dizia apenas que elas eram "suas" e que teriam que ir para casa fazer sua comida. Dissemos que aquele momento era importante, que elas foram convidadas pelo diretor da escola e não tardariam a retornar às suas casas. Ele passava a mão na barriga e repetia que elas "eram dele" e que tinham que fazer sua comida. Pedimos mais um tempo e ele parecia ter se conformado, mas ressaltava a necessida delas voltarem a tempo de preparar seu almoço.
Quando achávamos que a situação estava resolvida, ele se dirige à primeira das mulheres e começa a lhe dar tapas nos braços, parecendo incialmente brincar com ela. Mas os tapas foram ficando mais fortes e se via que ele não estava a brincar... a mulher não esboçava qualquer reação. Nós pediamos que, por favor, ele se retirasse. Éramos ignoradas, afinal de contas éramos mulheres também. Quando se sentiu satisfeito de estapear a primeira ele foi até a outra, lhe desferiu um forte tapa no rosto e saiu. Ela não reagiu... apenas ria constrangida e dizia que já ia para casa.
Aquele tapa doeu em mim. Minha face ruborizou e ferveu instantaneamente. Ficamos ali, a olhar aquele homem e aquelas mulheres sem acreditar no que estávamos presenciando. Elas pareceram envergonhadas, mas mantiveram a altivez. Nós desabamos.
Daquele momento em diante não sabíamos mais o que fazer. Deu vontade de chorar, deu vontade de gritar, de avançar no pescoço daquele homem idoso e franzino. Não seria covardia! Ficamos ali por alguns segundos, sem nenhuma reação... de frente para aquelas mulheres. Elas nos olhavam com delicadeza, como que pedindo para que fingíssemos que nada havia acontecido. Perguntamos se queriam ir para casa, insistimos para que fossem. Elas não quiseram. Foram até o fim no que haviam se comprometido a fazer. Seguiram adiante... falaram da escola dos seus sonhos para os filhos. Foram até o fim.
Nós ficamos lá... perdidas, em silêncio, incrédulas, humilhadas. Nos vestimos com a dor daquelas mulheres. Elas seguiram para suas casas, foram cumprir seus afazeres domésticos. Se despediram de nós sorrindo. Nós ficamos ali, com as faces em brasa e alma no chão.

2 comentários:

  1. "Elas não quiseram. Foram até o fim no que haviam se comprometido a fazer. Seguiram adiante... falaram da escola dos seus sonhos para os filhos."

    Falaram da esperança.

    Se na vida elas não fossem até o fim no que haviam se comprometido? Este homem, talvez, não as espancasse. Uma zorra dessa dói em todo mundo. A forma como você narra é incrível! Chorei como se o tapa fosse em mim.

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