domingo, 25 de outubro de 2009

A árvore do esquecimento

Pouco antes de embarcar para Angola, tive a imensa satisfação de assistir a um workshop com Mia Couto, festejado escritor moçambicano. O evento foi promovido pelo grupo de teatro que encenara sua obra O outro pé da sereia, e eu tive o privilégio de participar por conhecer o pessoal do grupo e ter "colaborado" com algumas discussões sobre o lugar do negro na sociedade brasileira.
À certa altura da discussão uma senhora pergunta ao Mia sobre a guerra e o processo de escravização que a população moçambicana sofreu. Ele responde a pergunta com simplicidade:

-Procuramos esquecer.

As pessoas parecem não ter ficado satisfeitas com a resposta e inicaram uma discussão. Ele, muito serenamente, explicou que cada sociedade tem um mecanismo para lidar com as suas "desventuras" e para sobreviver a elas e apesar delas. No pensamento africano, a estratégia é esquecer. Para mim, a explicação foi reveladora. Para a maioria dos presentes, me pareceu insatisfatória e até vulgar.

A revolta dos presentes é compreensível, na medida em que nós utilizamos o "lembrar" como estratégia de resistência. O Movimento Negro levanta essa bandeira, a máxima da ditadura argentina diz "não esquecer para que não volte a acontecer. Seguir para a frente sim, esquecer, jamais!" São modos de pensar diferentes e cada civilização adota aquele que mais lhe convém. Não há melhor nem pior. Nós aprendemos que é bom lembrar... a experiência deles diz que é melhor esquecer.

Na África existe o mito, não sei se seria correto dizê-lo assim, da arvóre do esquecimento. Trata-se de um exemplar de baobá ou embondeiro, com são conhecidas aqui em Angola. A história diz que é possível se realizar um ritual de esquecimento, que consiste em dar voltas em torno desta árvore. O ritual permite que os indivíduos esqueçam seu passado. Dizem que os negros capturados aqui para serem escravizados o realizavam antes de embarcarem nos navios em direção à América. Dessa maneira, eles poderiam esquecer suas raízes e tudo se tornaria recente, sem amarras.

O Mia tem argumentos contundentes para defender a tese do esquecimento:

"Só há um modo de enfrentar as más lembranças: é mudar radicalmente de viver, decepar raízes e fazer as pontes desabarem."

"Eis a nossa sina: esquecer para ter passado, mentir para ter destino."

"Quem não tem passado não pode ser responsabilizado. O que se perde em amnésia, ganha-se em amnistia."

Acho que o tema daria uma belíssima tese e deliciosas discussões em mesa de bar ou na casa de amigos. Acho que um bom começo seria ler O outro pé da sereia e assistir ao filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, que eu particularmente adoro, e devanear a noite inteira entre risos e aprendizagens.

Essa seria uma noite para lembrar...

6 comentários:

  1. Com vc aqui faremos isso e não esqueceremos, como muitas noites contigo são inesquecíveis.

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  2. Me desculpa, entrei aqui de gaiato, mas você escreve tão lindo, faz as coisas fluirem com tanta e suave naturalidade, que por compulsão precisei dizer-lhe do meu apreço e cumprimentá-la pelo que é e pelo que está fazendo. Deus permaneça com você por toda essa sua caminhada que, sem sombra de dúvidas, será maravilhosa. José

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  3. Edu meu amado... todas as noites com você são inesquecíveis amigo!!
    E José... seja bem-vindo. Obrigada pelas palavras doces e pela generosidade. Volte sempre!

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  4. oi pergunta esses filmes que vc sugeril fala ou menciona a árvore do esquecimento, pois sou de um grupo de atores e estamos trabalhando em cima dessa questão da árvore

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  5. Olá Silvia. E respondendo sua pergunta... o filme não fala da árvore. Fala do esquecimento... do apagar de lembranças e sua real efetividade. Vale a pena apagar o passado? É possível apagar ou ele sempre nos persegue? Pode ser que ele mencione algo, mas eu de fato não me recordo.

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  6. Cara Cléa

    Vide interessante narrativa de Platão sobre o esquecimento

    A descida das almas à Terra à luz de relato de Platão em “O Banquete” segundo referência de James Hillman.
    As almas em seus carros alados, antes de descer á Terra, chegam a um grande descampado, a planície da verdade. Dão uma ultima olhada para o alto e contemplam em seus pedestais, quatro nobres virtudes: Sabedoria, coragem (instrumento do Eu), temperança e Justiça, esta como equilíbrio harmônico entre a sabedoria, a coragem e a temperança.
    Contemplam pela ultima vez o mundo das idéias eternas e imutáveis na planície da verdade. Logo em seguida escolhem o que vai ser a sua vida efêmera, á qual permanecerão ligadas por obra de ananké, a deusa da Necessidade. Deusa caprichosa ananké tece seu fuso; suas filhas as temidas Parcas cortam o fio da existência quando querem.
    Quando a alma humana entra para a vida, é levada de barco para o outro lado de um rio chamado Lethe, e esta palavra significa esquecimento. Isso significa que a alma quando morre para o mundo espiritual para nascer como ente terrestre, esquece tudo, atravessa o rio do esquecimento. Mas será que realmente esquece tudo? Não, existe algo que ela sempre consegue lembrar. É algo do mundo espiritual, que sempre pode ser despertado na alma — o sentimento relativo ao que é verdade.
    Trata-se daquela verdade que nos esforçamos para trazer diante da consciência. Na língua grega isso está contido de forma claríssima. A palavra grega para “verdade” é alethéia. Verdade é algo que não passou pelo rio do esquecimento, porque esse “a” de alethéia representa negação .
    Quando nascemos e atravessamos o rio do esquecimento, trazemos na alma algo que não é atingido: a possibilidade de vivenciar a verdade em nossa consciência; portanto, bebendo no rio do esquecimento, prossegue o Mito, perdemos a memória dessa escolha inicial de nossas almas.


    João BV Padilha jvpadilha@uol.com.br

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